Após 11 anos de trâmite, ou seja, mais de uma década, a Câmara votou ontem e aprovou a PEC 215 que permite o confisco de terra daqueles que forem condenados por Trabalho Escravo. Essa prática, em 500 anos da história do país e da abolição forma da escravatura, nunca deixou de existir. A PEC é mais um instrumento contra. Não resolve, mas é um avanço na visão da coordenadora da Comissão Pastoral da Terra, Bete Flores.
– Por que a votação da PEC 438/2001 foi adiada?
A PEC foi apresentada pela primeira vez há 11 anos e há 8 anos esteve parada na Câmara dos Deputados para ser votada. A bancada ruralista adiou a votação diante do risco de perder suas propriedades, pois para estes a propriedade é sagrada estando acima da vida e da dignidade dos trabalhadores. É evidente que a PEC não resolverá o problema do trabalho escravo, mas será um instrumento importante de superação dessa prática. Para os ruralistas, a PEC é uma ameaça e por esse motivo eles usaram várias artimanhas para inviabilizar a votação da mesma.
– O que a PEC traz de novidade com relação à punição para quem mantém trabalhadores escravos?
A PEC traz a consequência de que haverá a expropriação dos imóveis, rurais ou urbanos, em que forem encontrados trabalho escravo. A expropriação é diferente da desapropriação, pois naquela o imóvel será tomado sem direito a indenização. A expropriação dos imóveis é a maior punição para os escravagistas que não tem receio das punições criminais, as quais são raras em nosso estado, onde até hoje, só existem 3 condenações pela prática de trabalho escravo, e destas 2 foram reformadas em segundo grau, havendo então somente 1 condenação pela prática deste crime que atinge a dignidade de milhares de trabalhadores.
Mas temos que entender que, infelizmente, a PEC não trará mudanças reais de imediato, a não ser o receio da perda da propriedade que pode levar os latifundiários a repensar o uso desse tipo de mão de obra, posto que, para haver a desapropriação dos imóveis, deve haver o devido processo legal, o que levará anos de trâmite destes processos.
– Como se dá a prática do trabalho escravo atualmente?
Em Mato Grosso, somente em 2011, foram 96 libertações de trabalhadores em 13 fazendas. Destes, 37 foram em monoculturas, 21 trabalhavam na pecuária e 19 no extrativismo. As regiões do Estado que mais tiveram libertações foram norte, noroeste e baixada cuiabana.
O trabalho escravo em Mato Grosso está diretamente ligado ao modelo de desenvolvimento do agronegócio, que prioriza os monocultivos, a pecuária, além do desmatamento. Quem escraviza sabe muito bem o que busca: o lucro, e o faz consciente. É a regra do sistema capitalista – lucro acima e a custo de tudo e de todos.
Ao olharmos para a história do país vemos que a escravidão se deu de diversas formas, primeiro com os indígenas, depois os negros, os quais foram substituídos pelos imigrantes e trabalhadores livres nacionais, sempre acompanhada da concentração de terras. Ou seja, a própria estrutura agrária do país “favorece” o trabalho escravo: a concentração de terra, que gera a expulsão de uma grande camada da população do campo, que migram para as cidades onde vivem em extrema pobreza. Teríamos que mudar todo o sistema do país para resolver a problemática do trabalho escravo, para com isso quebrar o ciclo do trabalho escravo que se inicia com a miséria. Enquanto este ciclo não for quebrado, acabando com pobreza e a miséria, o trabalho escravo não vai acabar.
– Existem tratados internacionais, aos quais o Brasil seja signatário, para prevenir e superar o trabalho escravo no mundo?
O Brasil se comprometeu a combater o trabalho escravo através de vários instrumentos internacionais, entre os quais se destacam:
Convenções das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926, emendada pelo Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956, foram ratificada pelo Brasil em 1966, que estabelecem o compromisso de abolir completamente a escravidão em todas as suas formas;
Convenção nº 29 sobre trabalho forçado ou obrigatório (1930) da OIT: ratificada pelo Brasil em 1957, onde os signatários se comprometem em abolir a utilização de trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas;
Convenção nº 105 sobre a Abolição do Trabalho forçado (1957) da OIT, ratificada pelo Brasil em 1965, onde os países signatários de comprometem em adequar sua legislação nacional;
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992, proíbe, no seu artigo 8º, todas as formas de escravidão;
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992, garante no artigo 7º o direito de trabalho equitativas e satisfatórias;
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica de 1969, ratificada pelo Brasil em 1992, com compromisso de repressão à servidão e à escravidão em todas as suas formas;
Ao analisar estas legislações e as do Brasil verificamos que o conceito brasileiro de trabalho escravo é mais amplo do que o da OIT, mas mesmo assim nosso conceito é aceito, sendo que estas convenções são piso mínimo par ao conceito do trabalho escravo. Este atual conceito brasileiro foi conseguido pela pressão popular através da alteração do artigo 149 do Código Penal ocorrido em 2003. Nesse sentido, rever o conceito brasileiro de trabalho escravo, como a bancada ruralista está querendo, condicionado a votação da PEC com a alteração do conceito, seria um retrocesso que não pode ser admitido de forma alguma.
– Como os movimentos sociais agem para superar o trabalho escravo em Mato Grosso?
A Comissão Pastoral da Terra – CPT realiza a campanha “De Olho aberto para não virar escravo”, que existe também a nível nacional. Ela é ancorada em três objetivos principais:
1- Acolher as vítimas resgatadas, recolher e encaminhar as denúncias, cobrança para que as denúncias sejam fiscalizadas, organizar os trabalhadores para que eles exijam seus direitos.
2- Prevenção por meio de formação. Realização de oficinas e palestras para os acampados e assentados, que são os trabalhadores mais vulneráveis à prática do trabalho escravo. Também orientar por meio dessas atividades os moradores das periferias, professores da rede pública, agentes pastorais, alunos de escolas públicas e universitários.
3- Subsidiar e monitorar a implementação de Políticas públicas de superação do trabalho escravo, com participação na Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE) e a nível nacional da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), e, principalmente com cobrança junto ao governo.
FONTE: Thaisa Pimpão, estagiária do Centro Burnier Fé e Justiça