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ESPECIAL: Entrevistas com os pesquisadores que descobriram veneno no leite materno em MT

Leia as entrevistas realizadas pelo site VIOMUNDO com os pesquisadores Wanderlei Pignati e Danielly Palma que realizaram estudos na região de Lucas do Rio Verde – MT

(FOTO: Divulgação)

Entrevista com Danielly Palma

A pesquisadora que descobriu veneno no leite materno

A repórter Manuela Azenha esteve em Cuiabá, Mato Grosso, onde assistiu à defesa de tese da pesquisadora Danielly Palma. A ela coube pesquisar o impacto dos agrotóxicos em mães que estavam amamentando na cidade de Lucas do Rio Verde. A seguir, o relato:

Lucas do Rio Verde é um dos maiores produtores de grãos do Mato Grosso, estado vitrine do agronegócio no Brasil. Apesar de apresentar alto IDH (índice de desenvolvimento humano), a exposição de um morador a agrotóxicos no município durante um ano é de aproximadamente 136 litros por habitante, quase 45 vezes maior que a média nacional — de 3,66 litros.

Desde 2006, ano em que ocorreu um acidente por pulverização aérea que contaminou toda a cidade, Lucas do Rio Verde passou a fazer parte de um projeto de pesquisa coordenado pelo médico e doutor em toxicologia, Wanderlei Pignatti, em parceria com a Fiocruz. A pesquisa avaliou os resíduos de agrotóxicos em amostras de água de chuva, de poços artesianos, de sangue e urina humanos, de anfíbios, e do leite materno de 62 mães. A pesquisa referente às mães coube à mestranda da Universidade Federal do Mato Grosso, Danielly Palma.

A pesquisa revelou que 100% das amostras indicam a contaminação do leite por pelo menos um agrotóxico. Em todas as mães foram encontrados resíduos de DDE, um metabólico do DDT, agrotóxico proibido no Brasil há mais de dez anos. Dos resíduos encontrados, a maioria são organoclorados, substâncias de alta toxicidade, capacidade de dispersão e resistência tanto no ambiente quanto no corpo humano.

No dia seguinte à defesa de sua tese, Danielly concedeu uma entrevista ao Viomundo.

A sua pesquisa faz parte de um projeto maior?

Minha pesquisa foi um subprojeto de uma avaliação que foi realizada em Lucas do Rio Verde e eu fiquei responsável pelo indicador leite materno. Mas a pesquisa maior analisou o ar, água de chuva, sedimentos, água de poço artesiano, água superficial, sangue e urina humanos, alguns dados epidemiológicos, má formação em anfíbios.

E essas pesquisas começaram quando e por que?

Começamos em 2007. A minha parte foi no ano passado, de fevereiro a junho. Lucas do Rio Verde foi escolhido porque é um dos grandes municípios produtores matogrossenses, tanto de soja quanto de milho e, consequentemente, também é um dos maiores consumidores de agrotóxicos. Em 2006, quando houve um acidente com um desses aviões que fazem pulverização aérea em Lucas, o professor Pignati, que foi o coordenador regional do projeto, foi chamado para fazer uma perícia no local junto com outros professores aqui da Universidade Federal do Mato Grosso. Então, começaram a entrar em contato com o pessoal e viram a necessidade de desenvolver projetos para ver a que nível estava a contaminação do ambiente e da população de Lucas.

E qual é o nível de contaminação em que a população de Lucas se encontra hoje? O que sua pesquisa aponta?

Quanto ao leite materno, 100% das amostras indicaram contaminação por pelo menos um tipo de substância. O DDE, que é um metabólico do DDT, esteve presente em 100%, mas isso indica uma exposição passada porque o DDT não é utilizada desde 1998, quando teve seu uso proibido. Mas 44% das amostras indicaram o beta-endossulfam, que é um isômero do agrotóxico endossulfam, ainda hoje utilizado. Ele teve seu uso cassado, mas até 2013 tem que ir diminuindo, que é quando a proibição será definitiva. É preocupante, porque é um organoclorado que ainda está sendo utilizado e está sendo excretado no leite materno.

Foram essas duas substâncias as registradas?

Não, tem mais. Foi o DDE em 100% das mães [que estão amamentando]; beta-endossulfam em 44%; deltametrina, que é um piretróide, em 37%; o aldrin em 32%; o alpha-endossulfam, que é outro isômero do endossulfam, em 32%; alpha-HCH, em 18% das mães, o DDT em 13%; trifularina, que é um herbicida, em 11%; o lindano, em 6%.

E o que essas susbstâncias podem causar no corpo humano?

Todas essas substâncias tem o potencial de causar má formação fetal, indução ao aborto, desregulamento do sistema endócrino — que é o sistema que controla todos os hormônios do corpo — então pode induzir a vários distúrbios. Podem causar câncer, também. Esses são os piores problemas.

Você disse que as mães foram expostas há mais de dez anos. As substâncias permanecem no corpo por muito tempo?

Permanecem. No caso dos organoclorados, de todas as substâncias analisadas, o endossulfam é o único que ainda está sendo utilizado. Desde 1998 os organoclorados foram proibidos, a pesquisa foi realizada em 2010, e a gente encontrou níveis que podem ser considerados altos. Mesmo tendo sido uma exposição passada, como as substâncias ficam muito tempo no corpo, esses sintomas podem vir a longo prazo.

Durante a sua defesa de mestrado, em que essa pesquisa foi apresentada, os membros da banca ressaltaram o quanto você sofreu para realizar a pesquisa. Quais foram as maiores dificuldades?

A minha maior dificuldade foi em relação à validação do método. Porque, quando você vai pesquisar agrotóxicos, tem de ter uma precisão muito grande. Como são dez substâncias com características diferentes, quando acertava a validação para uma, não dava certo para outra. Então, para ter um método com precisão suficiente para a gente confiar nos resultados, para todas as substâncias, foi um trabalho que exigiu muita força de vontade e tempo. Foi praticamente um ano só para validar o método.

Essas mães que foram contaminadas exercem ou exerceram que tipo de atividade? Como elas foram expostas ao agrotóxico?

Das 62 mulheres que eu entrevistei, apenas uma declarou ter contato direto com o agrotóxico. Ela é engenheira agrônoma e é responsável por um armazém de grãos. Três mães residem na zona rural, trabalhando como domésticas nas casas dos donos das fazendas. É difícil dizer que quem está longe da lavoura não está exposto em Lucas do Rio Verde, pela localização da cidade, com as lavouras ao redor. Mas a maioria das entrevistadas trabalha no comércio, são professoras do município, algumas donas de casa, mas não são expostas ocupacionalmente. A questão é o ambiente do município.

Mas a contaminação se dá pelo ar, pela alimentação?

A alimentação é uma das principais vias de exposição. Mas, por se tratar de clorados, que já tiveram seu uso proibido, então eu posso dizer que o ambiente é o que está expondo, porque também se acumulam no ambiente. No caso da deltametrina e do endossulfam, que ainda são utilizados, o uso atual deles é que está causando a contaminação. Mas, nos usos passados [dos agrotóxicos agora proibidos], a causa provavelmente foi a exposição à alimentação — na época em que eram utilizados — e o próprio meio ambiente contaminado.

Quais são as principais propriedades dessas substâncias encontradas?

Os organoclorados têm em comum entre si os átomos de cloro na sua estrutura, o que dá uma grande toxicidade a eles. Eles têm alta capacidade de se armazenar na gordura, alta pressão no vapor e o tempo de meia-vida deles é muito longo, por isso que para se degradar demora muito tempo. São altamente persistentes no ambiente, tanto nos sedimentos, solo, corpo humano, e têm a capacidade de se dispersar. Tanto que no Ártico, onde eles nunca foram aplicados, são encontrados resíduos de organoclorados.

O professor Pignati comentou que a Secretaria da Saúde dificultou um pouco a pesquisa de vocês, mas que vocês fizeram questão da participação do governo. Por que?

Nós vimos a importância da participação deles porque, quando a exposição da população está num nível elevado e está tendo uma incidência maior de certas doenças, é lá na ponta que isso vai estourar, é no PSF (Programa Saúde da Família). Então, a gente queria que a Secretaria da Saúde acompanhasse para ver em que nível de exposição essa população está e para que tome medidas. Para que recebam essas pessoas com algum problema de saúde e saibam diagnosticar, saibam de onde está vindo e o porquê de tantas incidências de doenças no município.

Se a maioria dessas substâncias não está mais sendo utilizada, o que pode ser feito daqui para frente para diminuir o impacto delas sobre o ambiente e a saúde?

Em relação a essas substâncias que não estão sendo mais utilizadas, infelizmente, não temos mais nada a fazer. Já foram lançadas no ambiente e nos organismos das pessoas. A gente pode parar e pensar no modelo de desenvolvimento que está sendo posto, com esse alto consumo de agrotóxico e devemos tomar cuidado com as substâncias que ainda estão sendo utilizadas para tentar evitar um mal maior.

Como que o agrotóxico pode afetar o bebê?

Esses agrotóxicos são lipofílicos e se acumulam no tecido gorduroso, então ficam no organismo e passam para o sangue da mãe. Através da placenta, como há troca de sangue entre mãe e feto, acabam atingindo o feto. E alguns tem a capacidade de passar a barreira da placenta e atingir o feto. Durante a lactação, o agrotóxico acaba sendo excretado pelo leite humano.

Então, mesmo que não amamente o filho, ele pode nascer com resíduo de agrotóxico?

Sim, isso se a contaminação da mãe for muito elevada.

Foi o caso nas mães [pesquisadas] de Lucas do Rio Verde?

Alguns níveis [encontrados] consideramos altos, até porque o leite humano deveria ser isento de todas essas substâncias. Deveria ser o alimento mais puro do mundo. E a gente vê que isso não ocorre, tanto nos meus resultados quanto em trabalhos realizados no mundo inteiro que evidenciaram essa contaminação. A criança acaba sendo afetada desde a vida uterina e depois na amamentação é mais uma quantidade de agrotóxicos que ela vai receber. Mas é sempre bom lembrar do risco-benefício do aleitamento materno. Nunca se deve incentivar a mãe a parar de amamentar porque seu leite está contaminado. As vantagens do aleitamento materno são muito maiores do que os riscos da carga contaminante que o leite pode vir a ter.

Quais os riscos dessa contaminação?

Os riscos saberemos somente com um acompanhamento a longo prazo dessas crianças. O que pode acontecer são problemas no desenvolvimento cognitivo e, dependendo da carga que o bebê receba desde a gestação, pode causar má formação, que pode só ser percebida mais tarde.

Esse acompanhamento dos efeitos dos agrotóxicos no corpo humano já foi feito ou ainda é uma coisa a fazer?

Quanto ao sistema endócrino, existem evidências. Estudos comprovaram a interferência dos agrotóxicos. Quanto a câncer, má formação e ações teratogênicas (anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal), estudos realizados em animais apontam para uma possivel ação dos agrotóxicos nesse sentido. Mas no ser humano não tem como você testar uma única substância. Quando fazem pesquisas, sempre são encontradas mais de uma substância no organismo e, portanto, não se sabe se é uma ação conjunta dessas substâncias que elevou aquele efeito ou se foi a ação de uma substância apenas.

Os resultados da pesquisa são alarmantes?

Foram alarmantes, mas ao mesmo tempo já esperávamos por esse resultado, até porque já tínhamos em mãos resultados da parte ambiental. Vimos que a exposição da população estava muito alta. Com o ambiente contaminado daquela forma, já era esperado encontrar a contaminação do leite, uma vez que o ambiente influencia na contaminação humana também.

O que será feito com esses resultados?

Os resultados já foram encaminhados às mães e, no início do projeto, assumimos o compromisso de, no final, nos reunirmos com elas e explicarmos os resultados. Esperamos que as autoridades do município e de todas as regiões produtoras acordem para o modelo de desenvolvimento que eles estão adotando, porque não adianta ter um IDH alto, ter boa educação e sistema de saúde, se a qualidade de vida em termos de exposição ambiental é péssima.

Fonte: Manuela Azenha – Viomundo
 
 

Entrevista: Wanderlei Pignati

Até 13 metais pesados, 13 solventes, 22 agrotóxicos e 6 desinfetantes na água que você bebe

Há cinco anos, Lucas do Rio Verde, município de Mato Grosso, foi vítima de um acidente ampliado de contaminação tóxica por pulverização aérea. Wanderlei Pignati, médico e doutor na área de toxicologia, fez parte da equipe de perícia no local. Apesar de inconclusiva, ela revelava índices preocupantes de contaminação.

Em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Pignati passou então a dirigir suas pesquisas à região Centro-Oeste.  Professor na Universidade Federal do Mato Grosso,  há dez anos ele estuda os impactos do agronegócio na saúde coletiva. É o estado onde mais se aplica agrotóxicos e fertilizantes químicos no Brasil, país campeão no consumo mundial dessas substâncias. Pignati alerta que três grandes bacias hidrográficas se localizam no Mato Grosso,  portanto quando se mexe com agrotóxico no estado, a contaminação da água produz impacto enorme.

O projeto de pesquisa coordenado por Pignati tem o compromisso de  levar  às populações afetadas os dados  levantados e os diagnósticos. Para ele, é fundamental promover um movimento social de vigilância sanitária e ambiental que envolva não só entidades do governo, mas a sociedade civil organizada e participativa.

Diferentemente da União Européia, aqui a legislação não acompanha a produção de conhecimento científico acerca do tema. Segundo Pignati, a legislação nacional, permissiva demais, limita a poluição das indústrias urbanas e rurais, enquanto paralelamente a legaliza.

As portarias de potabilidade da água, por exemplo, ampliaram cada vez mais o limite de resíduos tóxicos na água que bebemos. E na revisão da portaria que está prestes a acontecer, pretende-se ampliar ainda mais.

Pignati condena a campanha nacional em prol do álcool e do biodiesel, energias que considera altamente prejudiciais e poluentes para o país que as produz: “Se engendrou toda uma campanha para dizer que o biodiesel viria da mamona, do girassol, de produtos que incentivariam a agricultura familiar, mas é mentira, vem quase tudo do óleo de soja”.

Pignati também questiona a confiabilidade do  “uso seguro dos agrotóxicos”,  um aparato de normas e procedimentos que mesmo se contasse com estrutura para seu funcionamento ideal, ainda assim não garantiria o manejo absolutamente seguro dos venenos.

Para Pignati, a falta de investimento na vigilância à saúde e ao ambiente no Brasil é uma questão de prioridade: “Tem muito dinheiro para vigilância, mas não para o homem. Existe um verdadeiro SUS que cuida de soja e gado, produtos para exportação”.

Viomundo – Desde o acidente de Lucas do Rio Verde, o que o senhor vem pesquisando?

Wanderlei Pignati – Na verdade, faz mais de dez anos que pesquisamos os impactos do agronegócio ao homem e ao ambiente.

Na safra de 2009 pra 2010, Mato Grosso usou 105 milhões de litros de agrotóxico. O Brasil usou 900 milhões, quase 1 bilhão de litros de agrotóxicos. É o maior consumidor do mundo. E Lucas do Rio Verde usou 5 milhões em 2009. Aonde vai parar esse volume todo? É isso o que temos pesquisado.

Estudamos a contaminação das águas e para isso a gente trabalha com bacias. No Mato Grosso, você tem várias bacias. A bacia do Pantanal, que é do rio Paraguai e nasce aqui no estado. Tem a bacia do Araguaia, uma de suas grandes nascentes é o rio Morto, aqui em Campo Verde. E a bacia do Amazonas em Lucas do Rio Verde, cujas nascentes são os rios Verde e Teles Pires.

Portanto, quando você mexe com agrotóxico e fertilizante químico no Mato Grosso, está mexendo com as três grandes bacias do Brasil: a do Araguaia, a Amazônica e a do Pantanal. A bacia do Pantanal é uma questão mais séria ainda porque ela vai atingir outros países, como Paraguai, Argentina e Uruguai. Tem três grandes bacias e três biomas no estado: o pantanal, o cerrado e a floresta.

As nascentes dos rios dessas bacias estão dentro das plantações de soja. É o mesmo caso da bacia do Xingu, o maior parque índigena do Brasil. As suas  nascentes estão nos municípios em volta, onde está cheio de plantação de soja, de milho e algodão. Queriam implantar mais uma série de usinas de açúcar e álcool no entorno do pantanal, mas veio um decreto do presidente proibindo. O agronegócio não respeita essa questão das bacias e nem das nascentes dos rios. Essa problemática é o que estudamos.

Em Lucas do Rio Verde, em 2006, houve um acidente agudo que saiu na mídia. Na mídia daqui, saiu pouco porque é muito comprometida com quem a paga, que na época era o governador Blairo Maggi. Ele tem a mídia sob controle.  Na época, estavam dissecando soja em torno das plantações, que se estendem até a beira da cidade.  Planta-se e pulveriza-se com trator ou com avião. Em Lucas, pulverizava-se a soja transgênica, que é muito pior para o ambiente do que a soja normal.

Viomundo – A maioria da soja já é transgênica?

Wanderlei Pignati – No Mato Grosso, 80% dessa última safra já é. No Rio Grande do Sul, é 95%. Agora está entrando muito milho transgênico também. Aqui, tira-se a soja e planta-se o milho. São duas safras grandes de plantação aqui.

Viomundo – Os transgênicos exigem mais agrotóxicos?

Wanderlei Pignati –A soja transgênica sim, porque  não é resistente à praga, ela é resistente a um agrotóxico, que é o glifosato. Esse é um agrotóxico bastante usado, que a Monsanto patenteou com o nome de Roundup. Na soja comum, você não pode usar o glifosato depois de ela ter nascido,  porque ele mata o mato e a soja também. Mata minhoca, fungo, bactérias sensíveis a ele. Por biotecnologia, pegaram uma bactéria resistente ao glifosato e injetaram o DNA dessa bactéria no DNA da soja.

Então, o glifosato só era usado antes da soja nascer para matar as ervas daninhas. Agora, como é resistente, aplica-se o glifosato a cada quinze dias e o uso dele foi multiplicado na soja. Depois, precisa madurar e dissecar a soja rapidamente para plantar o milho.  No meio natural, demora um mês e pouco. Com esse dissecante, em três dias a soja madura, seca e a máquina já pode entrar na plantação. Isso para aproveitar as chuvas da segunda safra e plantar o milho. Mas para dissecar agora já não se  pode usar o glifosato, porque a soja é resistente a ele. Então usa-se outro tipo de agrotóxico, o diquat ou o paraquat, classificado como classe 1, extremamente tóxico. O glifosato é classe 4, tóxico também, mas pouco. Oparaquat é proibido na União Européia.

Além de multiplicar o uso do glifosato, você agora usa um agrotóxico extremamente tóxico como secante [da soja]. E não é toxico só para o humano, ele é altamente perigoso para o ambiente, porque mata tudo quanto é coisa, abelha, pássaro. E no  caso de Lucas, eles estavam dissecando a soja de avião, usandodiquat paraquat em torno da cidade.

Uma nuvem foi para dentro da cidade e queimou todas as plantas medicinais. Tinha um horto de plantas medicinais com mais de 100 canteiros que abastecia várias cidades. Foram queimadas as hortaliças e plantas ornamentais da cidade também. Deu um surto agudo de vômito, diarréia e alergia de pele em crianças e idosos. Os médicos classificaram como rotavirose.

Nós da Universidade Federal do Mato Grosso fomos chamados pelo Ministério Público de Lucas do Rio Verde e do estado para fazer uma perícia. A gente viu que a coisa era bastante séria, um acidente sério que acontece todo dia. É a chamada deriva de agrotóxico. É previsível, porque os agronômos sabem que tem vento, o vento não está parado. Então, você passa agrotóxico perto da cidade e o vento vai levá-lo para lá.

O pessoal se esconde por trás da palavra “deriva” para dizer que aquilo foi um acidente, mas é um acontecimento prevísivel. Passar um agrotóxico extremamente tóxico a partir de um avião é mais previsível ainda. Mesmo quando o agrotóxico já está no solo, ele depois se  evapora. Jogar veneno é um ataque quase de guerra. Não se trata de pesticida ou defensivo agrícola. Na legislação, está como agrotóxico. O trabalhador que está passando o agrotóxico pode estar protegido com todos os EPI (equipamento de proteção individual), mas e o ambiente? Vai colocar EPI nas outras plantas? Querem matar os insetos, o fungo, a erva daninha. Então teria de  colocar EPI nos outros animais, como no peixe e no cavalo.

O uso seguro do agrotóxico é altamente questionável. Pode ser seguro para o trabalhador, isso se ele usar todos os EPI. Mesmo assim, tem toda uma questão da eficiência e eficácia desses EPI. Sou também médico do trabalho e a gente vê isso. A eficiência e eficácia do EPI é de 90%, se [os trabalhadores] usarem máscara com o filtro químico adequado. E o resto do vestimento? Agrotóxico penetra até pelo olho! Pela mucosa, pela pele. Então teria que ter até um cilindro de oxigênio para respirar igual a um astronauta. O filtro pega 80% ou 90% dos tipos de agrotóxico. Hoje, você tem mais de 600 tipos de princípios ativos e são 1.500 tipos de produtos formulados. Tem agrotóxicos novos com moléculas muito pequenas que passam pelo filtro. Então, com toda a proteção ideal, você protege o trabalhador. Mas, e o ambiente?

Os resíduos vão sair na água, depois na chuva, vão ficar no ar, vão para o lençol freático. A gente viu isso na cidade, depois fizemos uma perícia mas ficou inconclusiva. Por isso, resolvemos fazer uma pesquisa junto com a Fiocruz. Ao mesmo tempo, estava-se articulando pesquisas em outros estados aqui da região Centro-Oeste. O nome da nossa pesquisa é “Avaliação do risco à saúde humana decorrente do uso do agrotóxico na agricultura e pecuária na região Centro-Oeste”. A gente pegou dois municípios e um município-controle, em que quase não se usa agrotóxico.

Viomundo – As pesquisas em Lucas do Rio Verde já estão bastante avançadas?

Wanderlei Pignati – Já. Talvez a análise do leite materno tenha sido um dos últimos tópicos, mas a gente continua com sapos e com peixes.  Em outros munícipios, a gente não fez o teste do leite, por exemplo. Mas isso porque Lucas é o maior produtor de milho no estado do Mato Grosso, terceiro em produção de soja. Então achamos que era necessário o trabalho. Analisamos o leite materno de 62 mulheres em Lucas, 20% das nutrizes amamentando no ano passado. Todas as amostras revelaram algum agrotóxico. Mas o que mais deu nessas amostras é um derivado de DDT, que se usava na agicultura até 1985 e na saúde pública, até 1998, para combater a malária.

Só que ele é cumulativo, entra na gordura e não sai mais. O segundo que mais deu foi endossulfam, 40%. É um clorado proibido faz 20 anos na União Européia. E por ser um clorado também fica acumulado na gordura. Retirar o leite é uma maneira de analisar os resíduos de agrotóxico na gordura, menos agressiva que uma biópsia. Quando a mulher fabrica o leite, as gorduras mais antigas vão para o leite.

Depois desse acidente, despertou na população um movimento de querer saber o que está acontecendo.

Viomundo – E depois que a perícia averigua a causa do acidente, o que acontece?

Wanderlei Pignati – Algumas coisas você comprova na hora, outras demoram anos. Fazemos análise de resíduo de agrotóxico na água, no solo, na chuva, no leite.

Para avaliar o leite, a gente começou há três anos a desenvolver uma técnica para analisar dez agrotóxicos de uma só vez. Uma substância isolada é custosa em termos de dinheiro e tempo e, analisando dez substâncias, a chance de encontrar  resíduos é maior. Das amostras, 100% deram pelo menos um tipo de agrotóxico. Pegamos os 27 tipos de agrotóxicos mais consumidos na região do Mato Grosso e fizemos as análises. Dentre os 27 mais consumidos, você não tem o glifosato, por exemplo, que é o herbicida mais usado no país, porque não tínhamos tecnologia no Brasil para analisá-lo. Hoje tem, mas é muito cara. Os únicos que fazem esse exame são meia dúzia de laboratórios.

Periodicamente a gente levanta dados, tem as dissertações de alunos. No nosso grupo de estudos, tem uma aluna que estuda resíduo de agrotóxico em leite, outra que estudou agrotóxicos e câncer. Onde tem a maior incidência de câncer aqui no MT? Justamente nas regiões  produtoras do estado. Em torno de Sinop: Lucas do Rio Verde, Sorriso, Nova Mutum, que são os municípios no entorno. A região de Tangará da Serra, Sapezal, Campos Novos dos Parecis, que são os grandes produtores de soja. E a região de Rondonópolis, Primavera, Campo Verde, Itiquira, onde se produz muito algodão.

São as grandes regiões produtoras onde tem maior incidência de câncer, má formação, intoxicação aguda. Você tem 80% a 90% desmatado nesses lugares. Se está desmatado, é porque está se plantando soja, milho e algodão até a beira das casas. Mato Grosso produz 50% do algodão do Brasil e é justamente a cultura que mais usa agrotóxico. No Mato Grosso, em média, um hectare de soja usa dez litros de agrotóxico: herbicida, inseticida, funigicida e o dissecante.  O milho usa seis litros. A cana, quatro litros e o algodão, vinte.

Como a gente tem grande produção de soja — são seis mihões de hectares de soja no Mato Grosso –, dá 60 mihões de litros de agrotóxico na soja. Obtemos esses números no INDEA [Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso], onde todo receituário agronômico e uso de agrotóxico é registrado. Na maioria dos estados não tem, mas deveria haver esse banco de dados. São 40 municípios que consomem 80% desses 100 milhões de litros de agrotóxicos.

No geral, ocorre uma contaminação, inclusive da chuva, que tem muito agrotóxico presente. Ele evapora,  depois desce, principalmente no período de chuva, que é quando mais se usa agrotóxico. Na entressafra, chove pouquíssimo. Então, quase ninguém está plantando. O agrotóxico evapora, desce e vai para toda região, não só para aquele município onde foi aplicado. Vai para o ar também. Se você está pulverizando a alguns metros de uma escola, esse ar vai para os alunos, para os professores. E os poços artesianos a alguns metros de uma grande plantação de soja, milho ou algodão também se contaminam.

Com o tempo, o agrotóxico vai penetrando no solo e sai no poço, mesmo que esteja a 50, 60, 70 metros de profundidade. Isso é o que a gente chama de poço semi-artesiano e a maioria é assim. Uma região de cerrado tem pouco abastecimento por córrego, é mais por poço artesiano que as cidades e comunidades rurais se abastecem.

Encaminhamos o relatório dessa pesquisa para o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Lá em Lucas, a gente já fez uma audiência pública na Câmara Municipal, onde apresentamos esses dados. Estavam presentes vários professores, vereadores, os secretários da saúde, educação e agricultura. As Secretaria da Agricultura e do Meio Ambiente são juntas em 140 dos 141 municípios de Mato Grosso. O grande poluidor do meio ambiente — a agricultura químico-dependente, que desmata e usa muito agrotóxico e fertilizante químico –  tem o mesmo gestor e fiscalizador que o meio ambiente. A maioria dos secretários da agricultura é de fazendeiros, eles não vão denunciar a poluição dos colegas deles. Aqui no estado, a única exceção é Cuiabá, mas é onde não tem agricultura.

O MP [Ministério Público] está elaborando um termo de ajuste de conduta. Em Campo Verde  também teve uma audiência pública para estabelecer uma legislação com os dados parciais que a gente já tinha e fazer uma legislação que determinasse a distância mínima para pulverização no entorno da cidade. O promotor recebeu o relatório e está preparando um ajuste de conduta também.

Esses lugares são semelhantes entre si, porque são dos 40 municípios do estado que consomem 80% dos agrotóxicos, dos fertilizantes químicos e das sementes. A dinâmica é parecida nesses 40 municípios. Desmata-se e pulveriza-se até a beira do córrego, no entorno dele e nas nascentes. As comunidades rurais e a própria cidade ficam ilhadas no meio das plantações.

No pasto, usa-se muito herbicida e inseticida e isso vai entrar no ciclo da carne. Os outros suínos e as aves são contaminados pela soja e pelo milho, porque a ração desses animais é à base desses produtos. Dessa maneira, os resíduos do agrotóxicos vão parar nos alimentos.

O Ministério da Saúde  analisou 20 tipos de alimentos e 30% pelo menos deram algum tipo de agrotóxico. A maioria dos agrotóxicos analisados — foram mais de cem –  é  autorizado aqui no Brasil.

Uma boa parte, uns 14, está sob revisão. Dois ou três foram proibidos e o endossulfam, bastante usado aqui e muito tóxico, vai ser proibido a partir de julho de 2013.

Metamidofois,  outro fosforado, que dá muito problema no sistema nervoso, psiquiátrico, até doença de Parkinson, vai ser proibido a partir de julho do ano que vem. Esses são proibidos há vinte anos na União Europeia e aqui quando é proibido, é só partir de 2013. Sabe-se que o metamidofós é cancerígeno, neurotóxico e mesmo assim só será proibido a partir de julho do ano que vem.

Viomundo – Já existe conhecimento científico suficiente para uma política mais incisiva? Por que é tão permissiva a legislação brasileira em relação aos agrotóxicos?

Wanderlei Pignati – Você tem a lei do agrotóxico, a Lei 7.802 de 1989,  depois regulamentada pelo decreto 4074, de 2002.  Mas existem alguns furos. Primeiro, quem está fiscalizando? É um volume imenso de agrotóxicos, todos permitidos no Brasil. Teria de haver alguns critérios. E os critérios que existem, como a distância mínima de 500 metros de nascente de água, casas, criação de animais, ninguém respeita.

Viomundo – Mas os critérios no Brasil são diferentes? Por que os proibidos lá fora, aqui são permitidos?

Wanderlei Pignati – São diferentes. Os mais tóxicos são proibidos lá e aqui permitidos. Isso por causa da nossa dependência econômica. Quem governa o Brasil? Aqui, no Mato Grosso, os grandes governantes são fazendeiros, assim como no Goiás. Falo de governantes não só do executivo, mas do legislativo também. Deputados estaduais, os veradores, uma boa parte é fazendeiro e comprometido com esse modelo de desenvolvimento.

Não querem mudar agora o Código Florestal para devastar mais ainda? Aqui, no Mato Grosso, 80% estão devastados por quê? Na região Amazônica também. Segundo a lei, teria que desmatar 20% e preservar 80% nas áreas de floresta, de preservação permanente. No cerrado, você pode desmatar 70% e deixar 30%.

Os agrotóxicos são fabricados lá fora e vêm para o Brasil. O compromisso dos empresários que vendem esses produtos não é com a saúde. E o grande fazendeiro quer saber de matar o que ele chama de praga.

A gente tem que inverter isso, quem é a praga que começou a desmatar, depois a usar um monte de veneno? Dá para produzir sem o veneno? Dá, é o modelo da agroecologia. Entra no modelo dos orgânicos.

O maior produtor de açúcar e álcool orgânico é o Brasil. É produzido numa cidade do interior de São Paulo, Sertãozinho. São 16 mil hectares de cana num processo industrial semelhante ao outro, tem máquina cortando mas sem usar uma gota de fertilizante químico ou agrotóxico. Começou 30 anos atrás, selecionando as sementes, as mudas de cana resistentes. Montou-se um laboratório próprio, com biólogo, engenheiro, para eles mesmos selecionarem ao invés de comprar sementes já selecionadas.

Diferentemente dos outros produtores, que dependem da meia dúzia de empresas que dominam toda indústria de semente de soja, milho, algodão, feijao, arroz. Essas empresas não fazem seleção para não usar agrotóxico ou fertilizante químico, se não como vai ficar a indústria deles, de fertilizante e agrotóxico? O mesmo dono da patente da semente é o dono do agrotóxico e do fertilizante químico. E mais ainda:  é o mesmo que produz o medicamento, da indústria química.

Hoje, uma boa parte de medicação que a gente usa para tratar pessoas que tiveram infecção aguda, câncer ou uma outra doença neurológica, psiquiátrica, é produzido por quem produz fertilizante químico e agrotóxico. É um complexo químico-industrial, estão todos ligados.

É um tanto esquizofrênico para essa sociedade que se diz desenvolvida. Tem que ser outro modelo de desenvolvimento, isso porque eu estou discutindo a área agrícola sem entrar na indústria urbana, que é semelhante.

Existe uma legislação para limitar a poluição e uma legislação paralela para legalizá-la.  Os jornalistas perguntam quanto que é o limite máximo permitido de agrotóxico no litro d’água? A gente já chegou a esse grau de não questionamento, de não se indignar, de acatar isso.

Se você pegar a Portaria 518 de 2004, do Ministério da Saúde, que chama-se Portaria da Potabilidade da Água, dá pra ver o que é permitido ter na água hoje. A gente fala muito de coliformes  fecais. Mas e os agrotóxicos são permitidos? E os solventes? E metais pesados? Todos eles são permitidos.

O litro de água que você bebe hoje, de acordo com essa portaria, pode ter 13 tipos de metais pesados, 13 tipos de solventes, 22 tipos de agrotóxicos diferentes e 6 tipos de desinfetantes. Hoje, a questão mais importante na contaminação da água não é mais a bactéria, mas toda essa contaminação química.

Viomundo – Essas portarias de potabilidade da água aumentaram cada vez mais o limite de contaminação. Por quê?

Wanderlei Pignati – Se você comparar essa portaria com a da Uniao Européia, vai ver que aqui tem 22 tipos de agrotóxicos enquanto lá pode ter, no máximo, cinco.  Os limites lá são ínfimos.

Enquanto lá você pode ter 20 microgramas de glifosato, aqui pode ter 500 microgramas. E ainda querem subir para mais. A primeira portaria, de 1977,  podia ter 12 agrotóxicos, 10 metais pesados, zero solventes e zero derivados de desinfetantes. A seguinte já é de 1990.  A vigente é de 2004. Isso acompanha o crescimento da população urbana e rural, que se  reflete na água. Os agrotóxicos são a poluição rural. Não se faz um tratamento adequado da água, só tiram os coliformes, botam cloro e fazem um tratamento primário. Esse tratamento, de 100 anos atrás, é feito por decantação.

Você coloca o produto, ele decanta, vai todo para o fundo, aí você aspira. É como limpar uma piscina. E os produtos químicos que ficaram dissolvidos na água? Quem usa muito solvente são as indústrias urbanas. Metais pesados são usadas nas indústrias urbanas e na agricultura também, junto com os fertilizantes químicos. Aquilo se acumula durante anos e sai na água. A portaria da potabilidade da água reflete a legalização da poluição urbana e rural.

Viomundo – Como o desenvolvimento urbano e rural foi crescendo, as portarias foram permitindo cada vez mais?

Wanderlei Pignati – Sim, porque essas substâncias vão sendo usadas cada vez mais. Depois,  na revisão da portaria, já querem aumentar o limite. Querem tirar alguns agrotóxicos antigos e colocar outros novos. É uma sociedade sem muita informação e sem muita indignação. A grande mídia fala de limite máximo de resíduo como se fosse uma banalidade. Tudo isso é permitido na água? O leite da vaca tem um monte de coisa permitida também, agrotóxicos que são muito usados no pasto e vão parar na carne e no leite.

Agora, quando é carne para exportar e existe esse limite de resíduo, aí fazemos as análises. Às vezes, volta soja e carne porque não foram aprovados pelo nível de resíduo de lá [do país importador]. Alguém ja viu incinerar aqueles vários navios de soja que voltaram? Depois que o produto saiu da indústria e foi para o supermercado daqui, seja carne, frango, soja, milho, quem fiscaliza?

A vigilância sanitária do município ou do estado tem que ir fazer as análises, e não se faz isso de maneira rotineira. Quando fazem análise de algum produto, analisam o coliforme fecal. Vêem se aquele produto entrou em putrefação. Mas vai fazer análise de resíduo de agrotóxico, que é cara?

Viomundo – Não fazem as análises por falta de estrutura?

Wanderley Pignati – Por falta de estrutura, mas não tem estrutura porque não tem investimento. Mas para exportar não fazem as análises? E para cuidar da saúde do boi e da soja? Existe muito dinheiro para a vigilância à saúde no Brasil, mas não para o homem. Existe a vigilância do boi e da soja. O SUS do boi e da soja.  A vigilância do boi e da soja tem escritórios do governo do estado nos 142 municipios, com agrônomo, veterinário. Tem mais de 20 carros. Quem é que faz toda a estrutura para vacinar 27 milhões de cabeças de gado do Mato Grosso?

Fazem campanha, o veterinário vai todo mês na fazenda ver se vacinou ou não contra febre aftosa. O fazendeiro compra a vacina, tudo bem, que é o custo menor. Aqui,no Mato Grosso, você tem 500 mil crianças abaixo de cinco anos e qual é a cobertura contra sarampo, hepatite, meningite, tuberculose? Vacinou quantos por cento das crianças? As 27 milhões de cabeças [de gado] estão todas vacinadas, do contrário não são exportadas. A infraestrutura é com o dinheiro público, mas os bois são de dinheiro privado. Com a soja, é a mesma coisa. Tem toda uma estrutura para não espalhar a ferrugem, que é um fungo da soja. Os agrônomos da Saúde tiram amostra, orientam os fazendeiros, fazem análise. O boi para exportar recebe cuidado, mas o que fica aqui e vai parar no supermercado, não.

Viomundo – O Mato Grosso é o maior produtor agrícola e maior consumidor de agrotóxico do país. O senhor acha que a alta produtividade de Mato Grosso depende do agrotóxico?

Wanderlei Pignati – As duas coisas estão ligadas. Cada vez se consome mais. Há dez anos, o hectare de soja consumia 8 litros e não 10 litros de agrotóxico, como hoje. Porque hoje você tem uma série de plantas já resistentes aos vários tipos de agrotóxicos. Então, primeiro você usa mais para ver se resolve.Depois, você troca por outro mais tóxico.

Viomundo – Mas é viável eliminar os agrotóxicos?

Wanderlei Pignati – Se você partir do sistema e começar a substituir a semente, sair desse domínio da semente, lógico que é viável, em grande escala. Como acontece em Sertãozinho, o maior produtor de açúcar orgânico do mundo. Eles exportam 99,9% dos produtos para União Européia. Hoje em dia a UE está preferindo nossos produtos orgânicos. Hoje tem algumas fazendas produzindo soja orgânica ou mesmo a soja tradicional, não transgênica, que já consome menos agrotóxico.

A UE prefere a soja não transgênica não só por causa do gene da bactéria que foi colocado junto com o da soja, mas também por causa dos resíduos do agrotóxico. Tem um nível de glifosato maior e depois, para dissecar, é usado o diquat ou paraquat, que é proibido na UE. Na China, na Índia, nos países do Oriente Médio e da África, esses produtos entram. Vamos levar a poluição para os nossos irmãos da África, da Ásia, que lá não tem controle nenhum. A sociedade precisa abrir os olhos e se mobilizar.

Viomundo – O governo Lula manteve esse modelo de desenvolvimento?

Wanderlei Pignati – Manteve, inclusive incentivou muito. Ele entrou dizendo que faria reforma agrária e fez praticamente nada. Ele fez 10% do que foi prometido. Em relação aos fazendeiros, ajudou o investimento na produção do biodiesel, da cana, ajudou a arrumar os portos, as estradas, mantendo algumas coisas do Fernando Henrique Cardoso. Por exemplo, manteve a antiga lei Kandir, em que os produtos rurais são isentos de imposto de exportação e do ICMS, então produzem soja e não fica um tostão aqui. Só produto industrializado é que paga imposto. Então, por que a gente produz tanta soja, exporta e mantém pouca industrialização aqui?

A carne é a mesma coisa, se você industrializar o que tem no frigorífco e transformar em salsicha, linguiça, aí paga imposto. E ainda vieram os governos estaduais, acabando com o ICMS.

Agrotóxico não paga ICMS, mas medicamento paga. Carros usados na agricultura, como tratores, não pagam ICMS aqui em Mato Grosso. São um monte de benesses que os governos federal e estadual deram ao agronegócio. Para a agricultura familiar, deu um pouquinho, para não dizer que não deu nada. Deram 95% aos grandes e 5% para a agricultura familiar.

Essa assistência técnica que o governo dá para os grandes produtores de boi e soja não tem nos assentamentos rurais. O governo manteve o modelo e ampliou mais ainda com o negócio do biodiesel, do álcool, dizendo que é a energia mais limpa do mundo. É mais limpa quando está dentro do navio, pronta para exportar, pois aqui dentro o álcool é a energia mais suja do mundo.  E agora o biodiesel. Tem que desmatar, usar agrotóxico, fertilizante químico, é o que mais emprega trabalho escravo, é o que mais está matando trabalhador na zona rural, inclusive de exaustão. Polui com os detritos dessas indústrias rurais.

Nossa gasolina tem que ter 20% de álcool e se consome muito nos carros a álcool. Agora, por decreto governamental, o diesel é 5% biodiesel. E de onde vem? Se engendrou toda uma campanha para dizer que viria da mamona, do girassol, de produtos que incentivariam a agricultura familiar. Mentira, hoje, 95% vem do óleo de soja. O Mato Grosso é um dos maiores produtores de biodiesel. Você pega o óleo de soja, que é um alimento, e transforma em óleo para ser misturado com o diesel lá em Paulínia [São Paulo]. O Lula incentivou isso. A maior indústria de biodiesel do Brasil fica aqui em  Barra do Bugres e há dois anos o Lula veio aqui inaugurar. Agora já tem dezenas no país todo. Assim como o álcool, com o qual poderia se produzir açúcar e outros alimentos em vez de ser produzido para carros.

Viomundo  – Do governo Dilma pode se esperar alguma mudança?

Wanderlei Pignati – É continuidade do governo que prioriza o desenvolvimento industrial urbano e rural nesse mesmo modelo. Pode piorar ainda mais se passar essa reforma do Código Florestal. Não é o governo da Dilma, é de vários partidos, como foi o do Lula. Um monte de empresários que permitem e mantêm esse modelo. A gente pensou que o governo Lula fosse mudar, não digo acabar com o capitalismo, mas, pelo menos, mudar um pouco essa correlação. Melhorar a agricultura familiar, ir no sentido da agroecologia, dar o mesmo privilégio de financiamento para os grandes e pequenos produtores. Nada disso aconteceu.

Viomundo – Lula ampliou o sistema de crédito para a agricultura familiar. O senhor não acha o suficiente para inverter o rumo do desenvolvimento?

Wanderlei Pignati – Ele ampliou no orçamento, mas no financeiro, quem conseguiu pegar? Grande parte dos assentamentos não tem uma legalização que pode ir lá pegar o financiamento. E se conseguir pegar, cadê a assistência técnica para ele produzir? A agricultura familiar vive um drama. Os pequenos produtores podem pegar 10 mil reais e o grande pega 10 milhões, 20 milhões. Desses 10 milhões de reais, ele vai investir oito e com os outros dois milhões, ele compra apartamento, outras coisas.

O pequeno, que pegou 10 mil reais para produzir, é com muito sacrifício, bota toda a família para trabalhar. São políticas iguais para o grande e para o pequeno — e não funciona assim. Tem de ter uma estrutura de crédito, de manejo, de assistência, que hoje não há. O grande produtor tem seus agrônomos. O pequeno, não. Fica sendo uma política mais demonstrativa, “dei tantos milhões”. Mas quantos pegaram? E os que pegaram o financiamento, quantos cumpriram aquilo? O pequeno gosta de cumprir. Os grandes não precisam, porque depois vem a anistia, eles não pagam impostos.

FONTE: Manuela Azenha – Viomundo

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