Carta do CEBI-MT aos padres e bispos, pastoras e pastores focados no moralismo sexual

Manter a lei brasileira da criminalização do aborto inibe a prática clandestina de abortos, como defendem lideranças de igrejas, ou, pelo contrário, a descriminalização do aborto ajuda a salvar mães e crianças, como o defendem outras lideranças como o teólogo José Comblin?

O Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, organizado em 25 estados brasileiros e presente em mais de 600 municípios, tem por objetivo aprofundar e consolidar a leitura da Bíblia que defende e promove a vida, através da inserção em comunidades eclesiais, grupos populares e movimentos sociais[1]. Nessa inserção, constatamos que está aumentando assustadoramente a violência e a discriminação contra gays, lésbicas e travestis, e a violência contra as mulheres, apesar do freio da lei Maria da Penha. Além de denunciar toda forma de hipocrisia e juntar-se às lutas sociais comprometidas de fato com a vida, o CEBI busca iluminar esta realidade com uma leitura libertadora da Bíblia, que ajude a minimizar a culpa que a sociedade joga sobre as mulheres e pessoas homoafetivas.

 Visitando os canais de TV e rádio católicos e evangélicos, e prestando atenção nas mídias sociais, ficamos espantados com tanto pregação focada unilateralmente no moralismo sexual. Será que o projeto de lei de descriminalização e legalização do aborto e as reivindicações do movimento LGBT são a grande ameaça à humanidade e ao planeta? A lei brasileira que considera o aborto crime tem ajudado a salvar mulheres e fetos? Direitos sexuais e reprodutivos são caso de polícia ou uma questão de saúde púbica?

O assunto veio à tona de forma acirrada nas eleições de 2010 e retorna com força nas eleições de 2014. Por isso nos dirigimos a vocês para jogar luzes no discernimento desta questão: manter a lei brasileira da criminalização do aborto inibe a prática clandestina de abortos, como defendem lideranças de igrejas, ou, pelo contrário, a descriminalização do aborto ajuda a salvar mães e crianças, como o defendem outras lideranças como o teólogo José Comblin? Numa carta intitulada “descriminalização do aborto para salvar mães e crianças” explica: “uma vez que uma mulher pode falar abertamente em aborto, as autoridades podem com a ajuda de psicólogas, de assistentes sociais, de assistentes religiosos dialogar com ela e buscar com ela outra solução, o que de fato acontece”[2].

Não duvidamos das boas intenções dos padres e dos bispos, das pastoras e dos pastores que pregam contra a proposta de lei que descriminaliza o aborto e o casamento gay. O fazem porque estão convencidos de que estão cumprindo a sua missão profética de cuidar e defender a vida das pessoas mais indefesas, fragilizadas e necessitadas de cuidado e acolhida, e os valores tradicionais da família. Mas será que a forma como se posicionam politicamente para semear a defesa da vida não estão ceifando mortes sobre mortes? Será que não se pode aplicar aqui o que constatou o apóstolo Paulo, na sua carta aos romanos: quero fazer o bem e acabo promovendo o mal que não quero (Carta aos romanos 7, 21)?

Antes de tudo, é preciso esclarecer três coisas:

Primeiro, ser a favor de uma lei civil que descriminaliza o aborto não significa ser a favor do aborto, muito menos a favor da banalização do mal. Pelo contrário. O que se quer é deixar de combater a injustiça com outras injustiças.  A lei sempre tem uma intencionalidade, o que os filósofos gregos chamam de epiqueia, que neste caso significa encarar o problema com responsabilidade evitando males maiores: a morte de milhares de mulheres por tentativas de abortos clandestinos mal sucedidos, e a injustiça que se comete contra crianças e adolescentes abusadas sexualmente, que em vez de serem assistidas com dignidade, são vitimadas mais uma vez. Este assunto foi palco de reflexão na recente campanha da fraternidade da igreja católica contra o tráfico de pessoas que teve como lema uma frase de Paulo aos gálatas: “É para a liberdade que Cristo vos libertou”.

Segundo, vivemos numa sociedade pluralista. Não se pode pretender que as convicções pessoais, por mais que se fundamentem numa religião, na Bíblia ou no Alcorão, ou até mesmo na mais profunda convicção de fé, seja a medida de tudo e de todas as coisas na sociedade que vivemos. Chamamos isso de fundamentalismo. Em nosso estudo sobre Fundamentalismos[3] (2011) mostramos que as atitudes de intolerância e negação das diferenças e diversidades culturais presentes no seio da humanidade podem ser ilustradas com o mito de Procusto. Procusto era guardião de Atenas, e toda pessoa que entrasse teria de caber certinho numa cama de ferro. Se a pessoa fosse maior do que a cama, ele cortava um pedaço. Se fosse menor, esticava a pessoa até chegar ao tamanho certo. O mito é, pois, uma metáfora da intolerância que impõe o sofrimento e a morte àqueles que não se enquadram em certos pesos e medidas.

Terceiro, conforme Leonardo Boff, precisamos amadurecer a “reflexão sobre a laicidade do Estado brasileiro (…) Laico é um Estado que não é confessional”, porém, respeita todas as religiões de forma imparcial. Por causa dessa imparcialidade, continua Boff, “não é permitido ao Estado laico impor, em matéria controversa de ética, comportamentos derivados de ditames ou dogmas de uma religião (…) nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista particulares. A laicidade obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar os dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e, diante dos conflitos, buscar pontos de convergência comuns”. Nesse sentido, verifica-se que setores de diferentes igrejas cristãs ferem a laicidade do Estado quando aconselham a seus membros a não votarem em certos candidatos por apoiarem “a descriminalização do aborto por razões de saúde pública ou aceitar as uniões civis de homossexuais. Essa atitude é inaceitável dentro do regime laico e democrático que é o convívio legítimo das diferenças”[4].

Em defesa da vida?

“Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal pelo bem” (Rm 12,21).

Causa estranheza que líderes de igrejas que antes pregavam a total separação entre religião e política, e que criticavam os padres, pastoras e pastores que militam em movimentos sociais e políticos de infiéis ao evangelho e a serviço de ideologias marxistas, e de repente, sob o escuto moralista contra o aborto, entram em campanha política acirrada, usando o púlpito e símbolos sagrados, pedindo ao povo para não votar em candidatos do PT, embora não seja somente este partido que acolha o surgimento dos “novos direitos”. Como explicar esta contradição?

Causa estranheza também que se faça tanto barulho nestes casos e se silencie totalmente em relação a atentados à vida de proporções muito mais graves, que afetam todo ambiente e que, inclusive, compromete a situação de vida das próximas gerações. Um estudo realizado pelo Formad[5], publicado em 2012, sobre a avaliação dos impactos socioambientais da produção de soja e cana no Mato Grosso, colheu relatos de agentes populares de saúde que afirmam que aumentou em muito, nos últimos anos, casos de câncer, de refluxo e de abortos. Estes dados são confirmados por cientistas do mundo inteiro[6] que pedem moratória imediata dos cultivos transgênicos por causa dos perigos que representam para a biodiversidade, a segurança alimentar, a saúde humana e animal, em conformidade com o princípio da precaução. Entre as diversas enfermidades que os transgênicos e seu uso intensivo de agrotóxicos causa na saúde humana são cânceres, malformações, doenças endócrinas, neurológicas, imunológicas, mentais e cognitivas; entre outros males como alergias, provocam abortos, causam depressão e levam a cometer suicídio. Integrantes de movimentos sociais e cientistas pediram o apoio do papa Francisco para convencer o governo brasileiro a suspender todas as licenças ambientais que autorizam o cultivo e o uso de transgênicos e derivados no Brasil, com um texto bem documentado, intitulado: Porque os transgênicos são uma ameaça aos camponeses, à Soberania Alimentar, à saúde e à biodiversidade no planeta [7].

O prejuízo não é somente à saúde humana, mas sobre toda biodiversidade. A terra está sendo violentada, de maneira intencional, contaminando todo o ambiente – o solo, o ar e a chuva, os rios e os lagos, os lençóis freáticos e os aquíferos, comprometendo a qualidade de vida das próximas gerações.

Por que, nestes casos tão graves, em vez de um posicionamento profético sobre decisões políticas tão impactantes, estes pastores preferem o silêncio, e nos casos de moral sexual se faz um estardalhaço tão grande?

O princípio da defesa da vida deve se estendido para todas as dimensões, começando pelo direito à comida saudável, moradia digna, aos cuidados básicos como saúde e educação, em sinergia com o cuidado com a biodiversidade das plantas e animais, terra, a água, o ar, o planeta todo.

Ivone Gebara[8] (2007) afirma com razão que “existe uma ideologia anti-abortiva que, infelizmente, entrou na Igreja como se, através do aborto, pudéssemos nos esconder das grandes questões vitais. O aborto aparece como o escudo de moralidade de algumas pessoas para não enfrentar grandes questões da sociedade brasileira. De um lado, fome, desemprego, violência, corrupção, acúmulo de riquezas nas mãos de poucos. De outro, toda sorte de discriminação e violência contra os povos indígenas e os negros. Então, reduzem a moralidade social a questões relativas à sexualidade”.

Aplicar o critério da promoção e defesa da vida no debate da legalização ou não do aborto, eis a questão. Estão em jogo vidas: a vida embrionária e a vida da mãe. Entre o ideal e o real, a realidade se impõe. Nem sempre a jovem mulher tem condições de escolher o melhor, porque suas escolhas por vezes não dependem mais dela.  Foi-lhe imposta uma situação e ela precisa encontrar uma saída.

Um dos princípios aplicados à moral cristão tem sido este: dentre os males o menor. Que condições de vida são criadas diante da escolha cruel? Que escolhas ela tem numa sociedade que criminaliza, na prática, a mulher, imputando-lhe uma culpa que carrega possivelmente pelo resto da vida? E que condições seriam criadas para ela quando lhe serão oferecidas condições de escolha e de assistência na saúde pública?

O atendimento pastoral a pessoas que abortaram mostra que esta é sempre uma realidade dramática. Se for legalizado e regulamentado, não quer dizer que seja praticada sem critérios. Assim como a bebida é legalizada e não se é obrigado a beber, a legalização do aborto não significa prática indiscriminada, nem como prática de controle da natalidade. Os padres e os bispos, os pastores e as pastoras poderão continuar a prestar a sua orientação pastoral e dar o suporte necessário através de suas estruturas sociais para que a criança seja gestada em condições dignas.

Quando os fariseus e escribas apresentaram a Jesus uma mulher apanhada em adultério não aplicou cegamente a lei de Moisés que obrigava o homem primeiro e depois a mulher a serem apedrejados (Levítico 20,10). Ele se abaixou até a condição da mulher e respondeu: “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” (João 8, 7)[9]. E todos se retiraram a começar pelos mais velhos… Em outra circunstância Jesus explicou sua liberdade  em relação à lei (epiqueia): a lei foi feita para as mulheres e os homens, e não os homens e mulheres para a lei (Marcos 2, 27).

Medo, culpa e ganância levam à hipocrisia. O mal cega e ensurdece corações e mentes. A partir daí, não vemos mais a vida real e nos escondemos num mundo violento e cruel, enfim, fundamentalista que leva ao terrorismo.

Por fim, quem se beneficiou com a pregação moralista contra a legalização do abordo e o casamento gay?

A resposta está numa avaliação crítica da atuação dos deputados e senadores que se elegeram sob a bandeira da criminalização do aborto. Os encontramos na bancada evangélica e na bancada ruralista. Votaram por um código florestal que beneficia e perdoa os crimes ambientais cometidos até 2008; votam em bloco contra a demarcação das terras indígenas, quilombolas e a criação de unidades de conservação, considerados, pelo agronegócio como elementos que limitam o acesso, o controle e a exploração territorial; pressionam o governo para aprovar a utilização de agrotóxicos altamente tóxicos, apesar de ser comprovadamente cancerígenos e abortivos.

Segundo o portal “Transparência Brasil”, todos os deputados que compõe a bancada evangélica respondem processos judiciais; 95% da referida bancada estão entre os mais faltosos; 87% da referida bancada estão entre os mais inexpressivos segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar – DIAP. Enfim, parece que o mal, do qual o apóstolo Paulo fala, está vencendo.

“Aquele, pois, que pensa estar de pé veja que não caia” (1 Coríntios 10,12). Tem muita gente gritando e acusando de pé. Cuidado, podem cair.

Portanto, usar o púlpito para pregar contra os candidatos de alguns partidos em detrimento de outros com um discurso moralizante, demonizando estes partidos, é colocar-se a serviço das forças do mal, da morte e despolitizar a discussão de projetos políticos a favor da vida e do bem comum.

Cuiabá, 10 de setembro de 2014

João Inácio Wenzel,
Coordenador do Centro de Estudos Bíblicos do Mato Grosso – CEBI/MT e secretário do Fórum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento – Formad.

Pr. Teobaldo Witter,
Coordenador do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade e ouvidor das polícias;

Roberto Rossi,
Coordenador do Centro Burnier Fé e Justiça – CBFJ



[1] No portal do Cebi –  www.cebi.org.br – se encontram mais informações, bem como seu vasto elenco de publicações.

[3] Wenzel, J.I. Rossi, R. Witter, T. Fundamentalismos. Relação entre Religião, Política e Direitos Humanos. (Palavra na Vida 287), CEBI 2011.

[4] Leonardo Boff. Estado laico e pluralista e as Igrejas. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/38090-estado-laico-e-pluralista-e-as-igrejas

[5] Schlesinger, S. Dois casos sériosem Mato Grosso. A soja em Lucas do Rio Verde e a cana-de-açúcar em Barra do Bugres. Formad 2012.

[8] Entrevista concedida ao IHU online em 14/05/2007, disponível em:  http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=920&secao=219

[9] Outros textosem que Jesus defende a mulher da discriminação dos homens líderes religiosos: Mc 5,21-43; Lc 7, 36-50.

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