Por Bruna Pinheiro / Formad
Ausência de consulta popular, racismo ambiental, risco de insegurança alimentar, vulnerabilidade social e criminalização da atividade de pesca. Estes são alguns dos argumentos da Nota Técnica assinada por pesquisadores, ambientalistas e organizações socioambientais de Mato Grosso contrários ao Projeto de Lei “Transporte Zero”, que proíbe a pesca nos rios do estado por cinco anos. O documento foi enviado aos deputados estaduais, que podem aprovar o PL ainda nesta semana. O assunto será tema de audiência pública nesta terça-feira (13).
A nota técnica foi elaborada pela doutora em Ecologia em Recursos Naturais, Luciana Ferraz, que é também membro do Conselho Estadual de Pesca do Estado de Mato Grosso (Cepesca). O documento reforça a tese de que o Projeto de Lei 1363/2023 do Governo do Estado representa prejuízos culturais, sociais e econômicos aos pescadores profissionais de Mato Grosso, mediante a um favorecimento da modalidade de “Pesque e Solte”, característica de pontos turísticos e regiões economicamente superiores às comunidades ribeirinhas do estado.
“A proposição do PL condiciona a negação aos pescadores do direito originário e constitucional de usufruto dos recursos naturais, inviabilizando a pesca artesanal, de subsistência, amadora e difusa, prejudicando diretamente as relações destes povos originários e hodiernos, usuários da água e dos recursos pesqueiros, que dela advém para sua soberania alimentar”, cita um trecho da nota.
O PL também é criticado pelo potencial risco de vulnerabilidade social às famílias que dependem da pesca para geração de renda, segurança alimentar e também como modo de vida. A nota técnica traz ainda um cálculo dos prejuízos financeiros e as consequências para os pescadores.
Apresentado pelo Governo de Mato Grosso, o PL 1363/2023 foi aprovado em primeira votação na sexta-feira (02.06). A proposta recebeu 14 votos favoráveis, cinco contrários e uma abstenção, sendo encaminhada para segunda votação. Nesta terça-feira (13), o tema será discutido em audiência pública da Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais da ALMT, a partir das 8h30.
Proposta de “auxílio” não cobre prejuízos financeiros
Em compensação à proibição de pesca, o Governo de Mato Grosso propõe um “auxílio pecuniário” aos pescadores habilitados no Registro Estadual de Pesca (Repesca), sob responsabilidade da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania (Setasc). Porém, a nota técnica, ressalta que “se a política proposta no PL 1363/2023, realmente estivesse preocupada com a sustentabilidade econômica e social dos pescadores artesanais, não colocaria a REPESCA na SETASC. A SETASC exerce a função de assistência social e pescador artesanal não precisa de amparo assistencialista do Governo. Precisa ser ouvido com respeito, obter linhas de fomento e crédito verdadeiras ao setor produtivo da pesca artesanal”.
De acordo com o PL, os pescadores receberiam o auxílio apenas em três dos cinco anos de proibição, sendo que o valor a ser pago reduz a partir do primeiro ano. Pela proposta, o auxílio seria de 1 salário mínimo no primeiro ano, 50% do salário mínimo no segundo e 25% no terceiro, o que revela uma notória e absurda tentativa de empobrecimento dessas populações.
“A iniciativa do PL 1363/2023, relembra o Brasil do tempo da escravidão, quando os escravos libertos pela Lei Áurea, não receberam nada do Estado, somente a discriminação e a exclusão social, para recomeçar uma nova vida, dita livre”, reforça a nota.
A nota técnica junta-se a outros documentos elaborados pela comunidade científica e ambiental que também critica o projeto, a exemplo da manifestação de repúdio ao PL que elencou cinco pontos de falha da proposta e questiona: “O Estado quer eliminar o pescador comercial para favorecer os outros usuários da pesca? Ou quer eliminar o pescador comercial para tirar poder de ação e negociação de todo o setor de usuários da pesca para favorecer os outros usos da bacia hidrográfica?”
Outro documento, assinado por representantes do Cepesca, do Fórum de Patrimônio Cultural, sociedade civil e movimentos sociais, também repudia o projeto com a coleta de assinaturas. O texto alerta que o PL 1363/2023 não passou por discussões no Conselho, que tem como função legal e constitucional promover debates para assessorar o Executivo na formulação da Política de Pesca.
Pesca tradicional, não. Pesque e solte, sim?
Outra questão levantada na nota é a autorização para o uso de peixes como lazer na modalidade “Pesque e solte”, realizada entre turistas e pescadores esportivos. “Lazer ao bel prazer em detrimento da segurança alimentar da sociedade mato-grossense e preservação do modo de vida do pescador artesanal e demais povos originários de Mato Grosso”, cita o documento.
A autora denuncia o racismo ambiental presente no PL 1363/2023, que determina que somente a pesca esportiva seja permitida, “estabelecendo as melhores paisagens e recursos pesqueiros ao lazer da elite, em detrimento do pescador sobreviver e manter seu modo de vida tradicional”.
Em sua maioria, os pescadores esportivos em Mato Grosso frequentam clubes e associações privadas, tendo condições de vida bem superiores aos pescadores artesanais e que usam o peixe como fonte de renda e alimentação e não de lazer. A conclusão é de que a balança do Governo para ambos os casos funciona bem diferente.
Foto: Michael Esquer