Passados dois meses do início da crise do Covid-19 no Brasil, muitos agricultores de Mato Grosso ainda não têm como vender seus produtos. Com a quarentena, feiras foram fechadas, encomendas reduziram e consumidores deixaram de fazer pedidos. Esta é a situação de Rita Júlia, do assentamento Margarida Alves no município de Mirassol D’Oeste e produtora de farinha de babaçu. Junto com as mulheres do “Grupo Margaridas”, a produção era vendida, principalmente, para uma farmácia de manipulação em Cuiabá. Antes da pandemia, elas comercializavam de 40 a 50 kg de farinha por semana e agora, com sorte, 10 a 20kg, mas em algumas semanas nada.
Outro baque na comercialização da agricultura familiar veio com a interrupção de contratos em andamento via o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que garante que 30% da merenda provenha de produtos da agricultura familiar. Os agricultores reclamam, ainda, que muitos municípios carentes não foram contemplados no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do estado de Mato Grosso para 2020.
Em reunião virtual com o secretário adjunto de agricultura familiar e desenvolvimento rural Carlos Alberto Simões de Arruda, no dia 21 de maio, representantes de diferentes regiões de Mato Grosso e de 14 organizações (Unicafes, FASE, CTA, UFMT, IFMT, Recoopsol, UFR, Unemat, Consea, Mais Gestão, Formad, MST, Fórum Mato-grossense de Combate aos impactos dos agrotóxicos e Empaer), reivindicaram medidas em caráter emergencial em razão dos impactos sociais e financeiros da pandemia do Coronavírus. “A SEAF (Secretaria de Estado da Agricultura Familiar) não vê o momento atual como emergencial para a agricultura familiar”, reclama Saguio Moreira, do Centro de Tecnologia Alternativa (CTA) do Vale do Guaporé.
Embora o governo do estado de MT já tenha publicado o Decreto nº 424 em 25 de março de 2020, declarando estado de calamidade no âmbito da administração pública estadual, os agricultores e organizações parceiras entendem que a administração não tem atendido com urgência a demanda dos pequenos produtores rurais. Uma das reivindicações, por exemplo, é a reabertura da Central de Comercialização da Agricultura Familiar (CAAF) com sede em Várzea Grande, que poderia se tornar um posto de distribuição estratégico para vendas online e para abastecimento das escolas neste momento da pandemia. A central, inaugurada em 2010, possui uma estrutura de câmaras frias e está desativada desde maio de 2019, aguardando processo de licitação para contratação de uma nova gestão do espaço. Na reunião, os participantes reivindicaram que, em caráter emergencial, os agricultores possam usar este equipamento para acessar o mercado da baixada cuiabana. No entanto, o secretário adjunto Carlos Alberto Simões insiste que é necessário “prosseguir com a continuidade do Chamamento Público conforme recomendado pela PGE (Procuradoria Geral Estadual) e referendado pelo MPF (Ministério Público Federal)”.
“A SEAF não está vendo o serviço que as e os agricultores estão prestando para as populações na cidade quando fazem entregas em casa. Se a gente está entregando as comidas na casa das pessoas, tem esta dimensão de as pessoas se exporem menos, de aumentar o índice de isolamento social”, reclama Clóvis Vailant da Recoopsol.
Exemplo deste serviço prestado pelo campo às cidades é a “Rota de Comercialização Caminhos da Agroecologia”, que possibilita a comercialização de produtos de Comodoro à baixada Cuiabana, passando por Conquista do Oeste, Pontes Lacerda, Cáceres, Jauru, dentre outros municípios. Dois caminhões saem toda semana de Comodoro, deixando produtos em diferentes municípios e entregando em outros. A volta é igualmente aproveitada para coleta e entrega de mais alimentos. Para se ter uma ideia da importância financeira desta circulação de produtos da agricultura familiar, segundo Leonel Wohlfahrt da FASE-MT, em 2019, a Associação Regional dos/as Produtores/as Agroecológicos (Arpa), uma das oito organizações que compõem a rota, comercializou 157 toneladas de produtos, um montante maior que R$ 500 mil e o Centro de Tecnologia Alternativa, outra das entidades, comercializou 54,6 toneladas de produtos diversos, quase R$ 650 mil. Essa comercialização se dá principalmente via PNAE e vendas online. No entanto, com a interrupção das aulas os contratos foram suspensos. As vendas online, embora significativas, não sustentam a logística sozinha e os agricultores ficaram sem ter onde vender seus produtos.
A merenda escolar durante a pandemia
Com a suspensão das aulas em virtude da pandemia, no dia 7 de abril de 2020, o presidente da república sancionou a lei Lei nº 13.987 (que modifica a Lei nº 11.947) autorizando, em caráter excepcional, que os recursos do PNAE fossem usados para comprar alimentos e distribuí-los aos pais ou responsáveis dos estudantes. Em tese, a lei estabelece, nas condições da pandemia, a possibilidade de que os estudantes continuem a se alimentar via a escola e que os agricultores possam entregar seus produtos para a mesa destas famílias.
No entanto, em Mato Grosso, os 61.358 mil kits de alimentação escolar distribuídos em abril a estudantes da rede pública estadual de ensino não contemplaram alimentos da agricultura familiar. Segundo a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), foram investidos R$ 2,7 milhões de recurso estadual disponibilizados diretamente para os kits e R$ 537 mil de recurso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que já estavam disponíveis nas contas do Conselhos Deliberativos da Comunidade Escolar (CDCE). Cada kit, definido pela Seduc, incluiu arroz, feijão, macarrão, molho de tomate, óleo, sal e frango.
Ao não incluir frutas, verduras e outros produtos comercializados pelos agricultores familiares mato-grossenses, o estado não apenas foge dos padrões nutricionais saudáveis e recomendados para a merenda escolar, como também infringe a Lei nº 11.947 e, ainda, deixa sem amparo milhares de agricultores que precisam comercializar seus produtos.
Questionada sobre os 30% de produtos da agricultura familiar nos primeiros kits, a Seduc explicou que eles foram distribuídos em caráter emergencial e que a maior parte do recurso não veio do PNAE. E afirmou, via assessoria de imprensa, que “do valor total dos alimentos adquiridos, 30%, no mínimo, precisa ser da agricultura familiar”.
A partir do dia 1º de junho começa a distribuição, nas escolas, da segunda leva de kits, que incluem, desta vez, produtos da agricultura familiar. Segundo informou o secretário adjunto da SEAF Carlos Alberto Simões, dos R$ 45,00 que custam cada kit, R$ 12,00 será destinado a compra de alimentos da agricultura familiar – o que ainda assim está abaixo do mínimo e 30% (R$ 13,50) previsto na lei.
Um diretor de uma escola de Várzea Grande, que não quis se identificar, explicou que a distribuição de alimentos frescos será um grande desafio para as escolas: “A conversa hoje foi em o quão difícil será confeccionar os kits com os produtos perecíveis, porque já foi uma dificuldade com os não perecíveis. Estamos só em dois (diretoria e secretaria). Então vai ser muito difícil você colocar alface, mandioca, sendo que só se entrega uma vez por semana”.
Carlos Alberto Simões, perguntado quais medidas a SEAF está tomando para amparar os milhares de agricultores que perderam seus espaços coletivos de comercialização, respondeu que a responsabilidade é dos agricultores: “Os agricultores devem se organizar para alcançarem os mercados existentes, a secretaria através dos conselhos que participa tem apoiado todas as iniciativas nesse sentido”.
Lívia Alcântara
Assessoria de imprensa/Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad)