Promover modelos diferenciados de atendimento adaptados à realidade de pequenos trabalhadores rurais e agricultores familiares em áreas de assentamento, como também de povos e comunidades tradicionais. Essa foi uma das principais recomendações para o recém-criado Sistema Mato-Grossense do Cadastro Ambiental Rural (Simcar), resultantes do II Workshop da Agricultura Familiar, de Povos e Comunidades Tradicionais, organizado pelo Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), no dia 7 de julho, no Parque Massairo Okamura, em Cuiabá. O evento reuniu cerca de 45 pessoas de diferentes localidades do estado, desde quilombolas a representantes de organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais.
Durante o encontro, representantes desses segmentos expuseram dúvidas a respeito da regularização e os desafios que têm no dia a dia para se enquadrar às normas vigentes. Não dissociar a questão ambiental da fundiária foi exposta como uma questão essencial nesta agenda.
“Na Comunidade Quilombola de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento (a 30 quilômetros de Cuiabá), ainda aguardamos a titulação da terra. Isso nos dificulta a ter acesso a políticas públicas, como acesso à água potável em poços artesianos, e obter o CAR para que possamos comercializar os produtos da agricultura familiar”, disse Adrianny de Arruda Abreu.
Populações tradicionais ainda aguardam vontade política. Foto: Sucena Shkrada Resk/Formad.
Cláudia Pinho, da articulação social da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras destacou que o CAR é uma via de acesso importante, que depende de vontade política. “Queremos discutir com o governo do estado que os territórios conservados não sirvam de compensação ambiental e que haja um debate a respeito do Zoneamento Socioeconômico Ecológico (ZSEE) mato-grossense) com relação ao Simcar”, reivindicou.
A preocupação de pescadores artesanais, como Sérgio Cezar da Silva, da Colônia Z2, de Cáceres, é quanto à necessidade de obtenção de atenção das autoridades competentes para que possam obter a regularização. “Temos dificuldade por não ter lugar fixo e aguardamos que aprovem nosso pedido para que transforme nossa área em uma reserva extrativista”, disse ele. Segundo ele, são mais de 700 pescadores que vivem com suas famílias
Luciano Pereira da Silva, pesquisador da Comissão de Registro de Patrimônio Imaterial de Pescadores e Pescadoras Artesanais de Cáceres, ressaltou que estes pescadores ainda sofrem pressão com a retirada forçada de apetrechos de pesca que fazem parte da marca de territorialidade deles. “Para este caso, existe um precedente positivo que poderia ser aplicado a esta comunidade, como ocorreu em Barão de Melgaço, em que houve a concessão a pescadores de áreas de uso sustentável”.
Para o retireiro Rubem Taverny Sales, da região do Araguaia, um aspecto que também não pode ser esquecido, neste processo de regularização ambiental, é o contexto da pressão por causa de perseguições políticas e de não poderem criar gado dentro de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) ou de um desenho de Reserva Extrativista (Resex), por conta das lógicas e normatizações do Estado.
O desafio das sobreposições
Durante o workshop, mais um ângulo desafiador exposto, foi o das sobreposições territoriais, como as que ocorrem sobre unidades de conservação (UCs) e terra indígenas (TIs). Esta foi uma questão apresentada por Silvia Fernandes, superintendente de Regularização e Monitoramento Ambiental da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA).
“Em UCS, é possível ter imóveis que são passíveis de regularização. Em áreas de proteção integral, esses imóveis devem ser objetos de compensação para quem tem déficit de reserva legal ou de indenização, se estão legalmente nestas áreas. O Simcar tem de enxergar essas propriedades”, explicou a promotora de justiça, Ana Luiza Peterlini. Ao mesmo tempo, ela expôs uma preocupação quanto à política atual no estado de poder compensar passivos ambientais fora de Mato Grosso. “É uma grande ameaça às unidades de conservação. O que não pode ocorrer é o governo parar de dar sinais para o combate ao desmatamento”, afirmou.
MPE apresenta dados sobre regularização ambiental e fundiária e aponta caminhos para sustentabilidade.
Silvia explicou que os dados do Simcar estão disponibilizados no site da Sema, para a realização de retificação ou novo CAR. Ela orienta que os interessados, se tiverem dificuldade de fazer o procedimento sozinhos, recorram às associações, que devem ter em mãos o Decreto e a lei, ou às prefeituras. “Nós não temos condições de estar em todos os lugares auxiliando”, disse.
Segundo ela, no caso de pequenos proprietários, por exemplo, são necessários documentos da posse e pessoais e comprovante de endereço atualizado com menos de 90 dias. São informações básicas”, esclarece. A superintendente alerta que não é possível fazer o CAR, sem saber o que há na propriedade, como a existência de desmate depois de 2008. “Agora conseguimos resgatar a segurança para a regularização”.
Participação de servidores no diálogo com agricultores familiares e povos tradicionais. Foto: Sucena Shkrada Resk/Formad.
Plano Estadual da Agricultura Familiar
O engenheiro florestal Leonardo Vivaldini dos Santos, assessor da direção da Secretaria de Agricultura Familiar e Assuntos Fundiários (SEAF) apresentou informações sobre o Plano Estadual da Agricultura Familiar, cuja minuta foi recém-aprovada pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável de Mato Grosso (CEDRS-MT). Segundo ele, o lançamento deverá ocorrer nos dias 30 e 31 de agosto, durante o Encontro Estadual da Agricultura Familiar, com a participação de representantes dos conselhos de desenvolvimento rural e das prefeituras. Neste ano, também deverá ser lançado o Portal da Agricultura Familiar de MT.
Santos relatou que um dos desafios na pasta é consolidar dados a respeito dos povos e comunidades tradicionais, porque existe a ausência de padronização geográfica e temporal dessas áreas. Ao mesmo tempo, mais um aspecto relevante no recorte do público-alvo da SEAF, é que 85% dos desmatamentos ocorrem em assentamentos (principalmente federais), sendo que 18,5% em imóveis até quatro módulos fiscais. O passivo ambiental de reservas legais é da ordem de 2.044.093 hectares, sendo 86,3% (1.763.632 ha) em assentamentos.
Seaf esclarece pontos sobre o Plano Estadual de Agricultura Familiar. Debate deve integrar propostas. Foto: Sucena Shkrada Resk/Formad.
Lívia Karina Passos Martins, superintendente do Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no estado de Mato Grosso, “Nosso desafio é trazer proprietários rurais de áreas de assentamento para a regularidade ambiental, para que tenha as áreas desembargadas e volte a vender sua produção. Quem desmatou depois de 2008, é importante que inicie a recuperação dessas áreas por meio de regeneração natural ou plantio efetivo dentro da Reserva Legal”, explica.
O plano tem como principal fonte de recurso, o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), na ordem de R$ 35 mi anualmente. Uma das propostas apresentadas, no evento, foi a de criar dispositivos específicos para destinar parte desta verba para um programa de regularização ambiental da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais.
Depois de diferentes sistemas de CAR adotados em Mato Grosso, Eleandro Mariani Ribeiro, da Cooperativa Agropecuária de Querência, espera que agora dê certo. “Praticamente voltou à estaca zero, depois do MT Legal e do Sicar”, disse a respeito da descontinuidade dos processos ao longo dos últimos anos.
Confira as principais propostas de encaminhamentos do Formad para esta agenda de regularização ambiental para a agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais, durante o workshop.
Segundo Herman de Oliveira, secretário-executivo do fórum, as propostas de encaminhamentos para a agenda de regularização ambiental do workshop serão enviadas em formato de ofício para órgãos que atuam no segmento. “Estas demandas seguirão para o Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), Seaf, Sema, Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) e Casa Civil para que providenciem respostas claras e concretas em relação a estas demandas. O acompanhamento das soluções e respostas possíveis e desejáveis ficará por conta do Formad”, explicou.
Confira as propostas abaixo:
– Propor modais diferenciados de CAR para assentamentos e povos e comunidades tradicionais;
– Oficializar à Sema e à Seplan quanto à inserção dos territórios tradicionais na base de dados do Simcar, compreendendo que cada territorialidade possui seus próprios referenciais espaciais;
– Organizar outro evento para a apresentação do Simcar (a partir da organização dos modais);
– Manter atenção aos acampamentos e aceleração dos processos de regularização fundiária dos assentamentos;
– Acompanhar a força-tarefa do desembargo dos assentamentos;
– Manter atenção aos processo de homologação de territórios quilombolas;
– Revisar áreas de reserva que necessitam ser recompostas (alerta: perigo de compensação em UCs);
– Avaliar projeto de hidrovia na Bacia do Alto Paraguai (BAP);
– Acompanhar de projeto do Intermat para o Vale do Rio Cuiabá;
– Verificar a inconstitucionalidade quanto ao artigo 67 no tocante à reserva legal (isenção até 4 módulos fiscais);
– Realizar controle social sobre a tramitação dos decretos;
– Criar dispositivos específicos para destinar parte dos recursos do Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab) para um programa de regularização ambiental da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais junto ao processo de descentralização das gestões;
– Criar e/ou fortalecer dispositivos legais/jurídicos/normativos que conectem os recursos à proposta do Plano Estadual da Agricultura familiar;
– Vincular as ações aos Programas Nacionais de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronafs) já existentes;
– Dar publicidade aos programas de acesso a recursos e meios;
– Construir processos não-burocráticos para acesso a recursos.
Veja também:
Regularização ambiental da agricultura familiar e de povos e comunidades tradicionais no centro do debate