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Afinal, a tese do Marco Temporal foi mesmo derrubada?

Tese é afastada no STF, mas segue em proposições do Congresso Nacional junto a outras pautas de enorme retrocesso à política indigenista.

Por Dafne Spolti / OPAN

“A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988”, diz o trecho da deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF) que afastou a tese do marco temporal durante o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, de repercussão geral. A decisão é uma vitória para os povos indígenas, que por vários anos estiveram mobilizados em suas localidades e em Brasília lutando pela garantia constitucional ao direito originário à terra, que antecede até mesmo a existência do Estado brasileiro.

A votação não foi fácil e expõe o contexto político e o jogo de forças que foi se agravando nos últimos anos.

Dessa forma, ainda que os ministros tenham concluído em conjunto tão importante processo, elas resultaram em mudanças inesperadas: a indenização sobre terra nua e a indenização prévia de benfeitorias, a limitação de tempo para redimensionamento de terra indígena; e uma abertura para a realocação de populações indígenas em caso de “total impossibilidade” de demarcação compõem a tese concluída dia 27.

Indenização

Até o julgamento, a indenização a um particular ocorria apenas sobre as benfeitorias por ele realizadas no território tradicional indígena. Agora, caso o particular comprove a ausência de ocupação pelo povo na época da promulgação da Constituição, assim como inexistência de disputa sobre a terra, ele pode reivindicar também a indenização pela propriedade em si, a chamada terra nua, desde que apresente o título da propriedade emitido pelo estado. O processo seguirá de forma paralela ao da demarcação, para que não se inviabilize a regularização da terra aos povos indígenas. Além disso, a medida não se aplica a terras já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, a não ser que o caso esteja judicializado.

Em relação à indenização sobre as benfeitorias, no entanto, nesse mesmo caso da terra não ocupada ou comprovadamente sem conflito fundiário, a tese prevê que a indenização seja prévia, gerando receio disso se configurar um obstáculo às demarcações.

Redimensionamento de terra indígena

Os pedidos de correção ou ampliação do limite de uma terra indígena passam a ser possíveis em no máximo cinco anos após a demarcação ou, para terras demarcadas há mais tempo, cinco anos contados a partir do julgamento.

Realocação de população indígena

Um outro ponto da tese é a possibilidade de realocação de um povo indígena em caso de “total impossibilidade de demarcação da terra”, como na situação hipotética em que um povo reivindique o território ancestral já sobreposto a uma cidade, por exemplo.

“Esperamos que a tese possa contribuir para a redução dos conflitos fundiários, garantindo aos povos indígenas os seus direitos territoriais”, avalia Ivar Busatto, coordenador geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN), destacando também o importante papel da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) nos processos de regularização fundiária, tendo os diálogos entre as partes como a tônica.

Para Kleber Karipuna, da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o desfecho foi positivo, mas também traz pontos de atenção ao movimento indígena: “O Supremo acorda em relação às indenizações questões prejudiciais aos direitos territoriais indígenas, principalmente em relação à indenização prévia e também à questão da terra nua”, avalia.

A tese do marco temporal no Congresso Nacional

A tese do marco temporal se multiplicou e entrou na pauta do Congresso Nacional de forma apressada nos últimos anos. Em 2021, em plena pandemia, já em votação no STF, foi reativada na Câmara dos Deputados por meio do Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do deputado Homero Pereira, de Mato Grosso, ao qual foram juntados outros projetos de lei inconstitucionais. Ele foi aprovado em maio deste ano e chegou ao Senado sob o número 2903, onde, rapidamente, foi aprovado. No mesmo dia de conclusão do Recurso Extraordinário no STF, dia 27, o projeto foi aprovado em velocidade impressionante no Senado, tanto pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) quanto no Plenário. Agora está para avaliação da Presidência da República.

O PL 2903 fere uma diversidade de normativas da política indigenista. Entre outros pontos, inclui o conceito de alteração de traços culturais para retomada de terras indígenas, favorece a exploração econômica e a instalação de empreendimentos com participação de terceiros nessas terras, e caminha em contrário à política de não contato aos povos isolados.

Além do PL, assim que o STF definiu a questão do marco temporal, foi protocolada no Senado, pelo senador Dr. Hiran, a Proposta de Emenda à Constituição nº 48, que tem como objetivo justamente alterar o artigo 231 da Constituição Federal, na tentativa de definir, mais uma vez, o marco temporal de demarcação de terras indígenas.

“O Senado vai na contramão da Constituição ao legislar em favor de tese declarada inconstitucional pelo STF. Infelizmente, a bancada ruralista não se conforma com um dos principais papéis das Supremas Cortes nas democracias: a defesa dos direitos fundamentais das minorias”, afirma a advogada do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula Batista.

O que acontece agora com o marco temporal?

A votação contrária ao marco temporal no STF não impede sua tramitação no Congresso Nacional, podendo se tornar vigente caso aprovada pela Presidência da República. Se seguir adiante, poderá, contudo, ser levada novamente à Suprema Corte, dada a inconstitucionalidade das propostas.

Diante desses riscos, o movimento indígena segue vigilante e ativo: “Iremos continuar a batalha para tentar, seja pela via ainda do Executivo, no veto dos pontos do PL 2903, e também pela via judicial, acionando a Suprema Corte em relação à inconstitucionalidade desse PL e a todos os outros pontos que nele constam além do marco temporal, tão danosos aos povos indígenas”, conclui Kleber Karipuna.

Foto: Agência Brasil

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