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Organizações socioambientais de Mato Grosso acionam o STF para suspender efeitos do Cota Zero

Advocacia Geral da União já se manifestou favorável ao pedido de inconstitucionalidade da Lei.

Por Bruna Pinheiro / Formad

Foi protocolado nesta quarta-feira (08) o Amicus Curiae assinado por organizações socioambientais de Mato Grosso com o pedido de inconstitucionalidade e suspensão de artigos da Lei 12.197/2023, que proíbe o comércio, armazenamento e transporte do pescado no estado a partir de 2024. O documento foi direcionado ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o destaque à “urgentíssima necessidade de concessão de medida cautelar”, em vista do pouco tempo de início da proibição (menos de dois meses). Entre os argumentos defendidos pelas organizações estão a inconsistência científica para sustentar a proibição da pesca, violação de direitos humanos, previdenciários e dispositivos constitucionais, e desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

O Amicus Curiae é assinado pelas organizações Fórum Nacional de Sociedade Civil na Gestão de Bacias Hidrográficas (FONASC-CBH), Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), Instituto Centro de Vida (ICV) e Instituto de Pesquisa e Educação Ambiental (Instituto GAIA) e enviado ao ministro do STF André Mendonça, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7471, requerida pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), no mês passado.

A petição centra-se na análise da constitucionalidade do artigo 19-A da Lei, acrescido à Política de Pesca de Mato Grosso, que “instituiu a drástica proibição geral de pesca artesanal comercial pelo período de cinco anos, a se iniciar em janeiro de 2024”. De acordo com as organizações, a proposta apresentada pelo Governo “mantém hígida a pesca científica, esportiva, de subsistência e amadora, mas proíbe a pesca profissional, que é exercida, em regra, pelo grupo mais vulnerabilizado: o dos pescadores profissionais artesanais, que dependem economicamente das atividades pesqueiras para viver com dignidade”.

Dados do Sistema Informatizado do Registro Geral da Atividade Pesqueira do Mato Grosso, o Registro Geral da Atividade Pesqueira, contabilizam cerca de 15 mil pescadoras e pescadores profissionais artesanais, sendo 10.033 ativos no SisRGP Legado (antigo) e 5.180 ativos no SisRGP 4.0, além de subnotificações. Distribuídos em 20 colônias pelas três bacias hidrográficas do estado: Amazônica, Araguaia-Tocantins e Paraguai, as pescadoras e pescadores desempenham não só um papel comercial, profissional, como representa um modo de vida “com divisão de trabalho entre os membros da família, sendo assim, uma atividade fundamental para garantir a renda, empregos e a segurança alimentar de milhões de pessoas que vivem em comunidades pesqueiras de todo país”, conforme Nota Técnica do Ministério da Pesca e Aquicultura.

Um dos argumentos reforçados pelas organizações aponta para a inconsistência científica da proibição imposta pelo Estado. O Amicus Curiae defende que a Política da Pesca em Mato Grosso, vigente desde 2009, “já estabelecia uma série de medidas de conservação da ictiofauna, almejando, com isso, conciliar a proteção da biodiversidade (dever fundamental e inafastável, atribuído ao Poder Público pelo constituinte originário) com as atividades artesanais de pesca comercial (prática abrigada pela proteção conferida pela Constituição Federal aos direitos culturais e econômicos, bem pelo objetivo fundamental de redução das desigualdades sociais).”

Depreende-se que já havia uma legislação que previa a proteção da ictiofauna. Desta forma, a “redução do estoque pesqueiro” apontada pelo Governo de Mato Grosso foi apenas  uma suposição nunca comprovada como argumento para a proibição geral da pesca. Esta proibição, se constatada, deveria ter como base pesquisas realizadas com métodos científicos consistentes. Sendo assim, o documento denota que“tais medidas de conservação (e outras, como a proibição da pesca em certos locais ou de certas espécies) poderiam ser reforçadas e acompanhadas por ações de monitoramento pesqueiro, antes de se conjecturar a adoção de uma proibição drástica sobre a atividade de pesca artesanal comercial em todo o território do Estado. Ou seja, antes de se partir para uma medida extrema e com altos impactos socioeconômicos, seria possível aplicar outros remédios, dotados de efeitos colaterais mais brando”.

Mato Grosso na contramão de política federal de conservação

Por meio da Portaria nº 355, de 27 de janeiro de 2023, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), implantou o Plano de Recuperação do Surubim ou Pintado para o monitoramento e controle da subpopulação do peixe. A espécie é de alta ocorrência em Mato Grosso e em outros estados da federação, sendo incluída na lista de peixes ameaçados do Ministério do Meio Ambiente (MMA) no ano passado.

O Plano foi utilizado como argumento pelas organizações para demonstrar a viabilidade de uma medida que seria, então, oposta à adotada pelo Governo de Mato Grosso em relação à preservação de espécies. Isto porque, de acordo com o ICMBio, as medidas de conservação vigentes seriam suficientes para a conservação do Pintado, não sendo necessária a proibição da pesca. Na ocasião, o órgão federal reconheceu que “a principal ameaça sobre a espécie são os barramentos, por interromperem as rotas migratórias, e não a pesca. Por isso, como primeiro passo para a recuperação do surubim pintado, adotou ações de monitoramento, afirmando que isso contribui não apenas para a fiscalização, mas também para o aperfeiçoamento do diagnóstico do problema, possibilitando a concepção de medidas eficazes e tecnicamente adequadas para a recuperação da espécie”.

O documento pontua outras notas técnicas e manifestações da comunidade científica, contrárias ao argumento de redução do estoque pesqueiro nas bacias de Mato Grosso. Diante disso, as organizações sustentam ser desnecessário instituir uma proibição geral e imediata da pesca artesanal no estado.

Violação de direitos e perdas previdenciárias

Para o FONASC-CBH, Formad, ICV e Instituto GAIA, o Cota Zero é extremamente gravoso, por impactar a vida de mais de 15 mil pescadoras e pescadoras artesanais que têm no comércio do pescado sua principal fonte de renda. “Não bastasse perderem seu modo de vida e sua fonte de sustento, tal grupo social será retirado compulsoriamente do RGPS, perdendo direitos à aposentadoria, auxílio-doença, salário maternidade etc. Perderão também o seguro-desemprego durante o período do defeso”, acrescenta o documento.

As organizações defendem que, ainda que o período proibitivo possa ser reduzido de cinco para três anos, o Cota Zero não modifica os profundos danos sociais à população, já que a exclusão do RGPS e a perda do seguro defeso devem ocorrer igualmente, assim como a perda da principal fonte de sustento. A proibição também “desmobilizará as comunidades pesqueiras, impactando os aprendizados intergeracionais e ameaçando os modos de vida desse grupo social”.

O artigo 19-A da Lei fere também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a realização da Consulta Livre, Prévia e Informada cada vez que medidas legislativas ou administrativas afetem povos e comunidades tradicionais, sob o risco de incidência em violação de direitos humanos, caso não ocorra. Neste contexto, a pesca artesanal é uma atividade tradicional exercida tanto por povos indígenas quanto por comunidades tradicionais. Logo, estes grupos deveriam ter sido consultados previamente à discussão da proposta, o que não aconteceu em Mato Grosso.

Inconstitucionalidade é reforçada pela AGU

Na última sexta-feira (03), a Advocacia-Geral da União (AGU) manifestou-se pela procedência do pedido de inconstitucionalidade da Lei ingressado pelo MDB. Os advogados destacaram que os argumentos do Estado pela proibição da pesca “não apresentam justificativas científicas e análise de indicadores quantitativos e qualitativos de sustentabilidade da pesca, que comprovem tais argumentos da necessidade de inviabilidade da pesca”.

Ao avaliar procedente a ADI, a manifestação acrescenta que “a lei estadual ao impor restrições desproporcionais aos direitos fundamentais dos pescadores, compromete o âmago de sua dignidade, e quiçá sua própria existência, o que contribui razão suficiente para o reconhecimento de sua inconstitucionalidade”.

O Formad, assim como as organizações signatárias do amicus curiae, agora aguardam por um retorno do STF sobre o mérito, enquanto seguem mobilizadas em defesa da derrubada do Cota Zero. 

Foto: Lidiane Barros

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