“Mulheres de luta: do campo e da cidade” é o tema da série de perfis que o Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) lança hoje, 8/3, com histórias de mulheres dedicadas a lutar junto a comunidades tradicionais, indígenas, agricultores e agricultoras, na defesa de direitos e soberania. Para começar, uma agrônoma que percebeu a necessidade de se tornar protagonista de sua história, e escolheu atuar de maneira coletiva.
Cidinha Moura nasceu em Cáceres, é filha de mineiros e descobriu cedo que viveria com os pés e as mãos na terra. Seu pai e sua mãe eram pequenos agricultores, o que proporcionou uma infância cheia de experiências inesquecíveis. “Na minha infância tive muita fartura de alimentos. Eu colhi manga e laranja no quintal da minha família. Tive contato com os animais. Tomava o leite na beira do curral porque sabíamos da saúde dos animais. Eu tive o privilégio de ter tido fartura na minha infância. Eu nunca vivenciei a fome. Meus pais viviam da agricultura mas eu nunca passei por dificuldades que eu percebo que muitas famílias passam hoje, mesmo vivendo no campo. Eu pude usufruir de alimentos de qualidade”, relembra.
“O acesso à escola era difícil porque nós morávamos no sítio e tínhamos que ir a pé ou de bicicleta, sob sol ou chuva. Apesar disso, era uma vida de muita abundância, inclusive das relações e manifestações culturais.”
Quando teve que escolher sua formação profissional, há trinta e cinco anos, ela optou pelo curso de Agronomia, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Cidinha relembra que o encontro com a agroecologia foi resultado da formação obtida na universidade e, especialmente, no movimento estudantil. O cenário da agricultura em Mato Grosso era um pouco diferente: “Falava-se muito pouco da agricultura familiar. Como eu participava do movimento estudantil eu tive a chance de conhecer assentamentos. Ainda era o período da luta pela terra. Eu conheci vários agricultores que hoje estão assentados, mas naquela época ainda lutavam pela terra”, afirma.
“Nesses 30 anos, a agricultura familiar conquistou mais visibilidade, os povos e comunidades tradicionais acessaram políticas públicas, mas seus territórios ainda continuam sendo ameaçados. As mulheres ainda vivem situações de vulnerabilidade social. E ainda temos a volta da fome. Alguns problemas persistem, desde a década de 1990, a exemplo da não-demarcação das terras indígenas e dos territórios quilombolas.”
“Sem feminismo não há agroecologia”
As questões de gênero na profissão ficam mais evidentes para Cidinha nos primeiros anos do curso de Agronomia, um espaço “tradicionalmente” ocupado por homens, até então. “Na minha turma havia cinco mulheres, de um total de 25 pessoas. Era um número até alto porque havia turma com apenas uma mulher. Nós sofríamos muito preconceito por parte dos professores, por exemplo, para você ser bolsista, eles preferiam os homens, mas para algum trabalho que exigia maior dedicação, principalmente de laboratório, eles davam preferência para as mulheres. Era uma visão de que nós, agrônomas, poderíamos ficar em laboratórios porque as mulheres prestam mais atenção. Eu já escutei professor dizer que: ‘não vou conceder bolsas para vocês que precisam acompanhar o projeto em campo porque quando vocês estiverem menstruadas vocês não vão. Pode perder o experimento’”, relembra.
Ao tornar-se agrônoma, Cidinha decidiu atuar na construção de outra alternativa para as mulheres, para a terra e para Mato Grosso. E ela não se arrepende. “A Federação dos Estudantes de Agronomia (FEAB) realizava diversas discussões, inclusive sobre a fome como um problema político. Eu participei ativamente do processo de construção do que é a agroecologia hoje. As mudanças no cenário atual são reflexos da nossa luta, desde a década de 1980”, diz.
Cidinha foi a primeira mulher a assumir a coordenação da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), em Mato Grosso. Na contramão do agronegócio, o objetivo é fortalecer as organizações da agricultura familiar e populações tradicionais. “No movimento agroecológico nós temos um lema: sem feminismo não há agroecologia. O nosso movimento é forte, é percebido pelas pessoas e respeitado. Mas, nós já sofremos muito para constatar que hoje existem mais mulheres na Agronomia e mais professoras porque era muito raro.”
Sabedoria para produzir alimentos
No dia a dia, Cidinha convive com agricultores e agricultoras das cidades localizadas na Baixada Cuiabana e Sudoeste de Mato Grosso, a exemplo da cidade de Cáceres e municípios vizinhos. “Eu percebo que as mulheres das comunidades tradicionais têm uma relação com a terra na produção, no conhecimento do plantio, da colheita e das variedades. Por exemplo, as agricultoras sabem qual cana é melhor para produzir melado ou rapadura. Sabem dizer qual milho é melhor para a alimentação dos pequenos animais, e as técnicas de conservação das sementes. A relação com a terra por parte das agricultoras é vivida intensamente.”
A característica principal de organização das mulheres na região, de acordo com a agrônoma e educadora, é a coletividade. “São famílias, elas vivem no coletivo. Existem roças coletivas e o beneficiamento coletivo. Esse conhecimento sobre a terra é repassado de mãe para filha, entre as gerações, de como produzir, de como fazer o beneficiamento e de comercializar. Elas têm consciência de seus direitos e percebemos que se organizam em associações ou até em grupos informais, um espaço só delas. Elas sofrem menos violência se a gente comparar com outras mulheres que não participam desses espaços de formação e articulação. Sabemos que a violência é grande, mas, nessas comunidades em que há organização das mulheres, a violência é bem menor. Mas, elas enfrentam muito machismo por parte dos maridos e toda a sociedade”
Contraponto ao agronegócio
Ao escolher a agroecologia como maneira de semear a resistência, justamente no estado que é conhecido como o “celeiro” do Brasil, Cidinha compartilha os principais desafios do cenário atual. “O agronegócio não produz alimentos. O agronegócio produz commodities. Quem realmente produz os alimentos que são consumidos pelo povo mato-grossense são os agricultores e agricultoras familiares.”
“Os agricultores familiares, na verdade, sofrem os impactos que o agronegócio provoca: a exemplo da contaminação dos alimentos por agrotóxicos. A outra questão é essa constante ameaça aos territórios. Às vezes os agricultores precisam deixar de produzir para fazer a luta e conseguir se manter no território. Tem quilombolas que são despejados todos os anos, perdem sementes, e se afastam da terra por conta dessas ameaças aos seus territórios. Hoje podemos dizer que temos experiências de agroecologia em todas as regiões de Mato Grosso, por conta do trabalho exercido pelas organizações dos agricultores/as, pela Pastoral e ONGs. As comunidades estão fazendo o contraponto contra as mazelas do agronegócio”, explica.
Cidinha acredita na ampliação da relação do campo com a cidade, por meio da construção social de mercado, a exemplo da rota “Caminhos da Agroecologia” e outras ações colocadas em prática em Mato Grosso. “A agricultura familiar organizada consegue produzir e colocar alimentos na mesa dos mato-grossenses. Muito diferente do agronegócio que produz commodities para exportação, contamina o solo e não tem interesse na relação com a natureza. Ao contrário da agricultura familiar que valoriza muito e depende dessa relação com a terra.”
Por conta da pandemia causada pelo novo coronavírus, algumas ações estão em espera porque dependem do contato presencial. No entanto, o objetivo de fortalecer as relações de agricultoras e agricultores com os consumidores mostrou-se fundamental de 2020 para cá, a exemplo do consumo solidário. “O campo e a cidade têm que se unir. Os agricultores produzem os alimentos e os consumidores querem consumir. É um grande desafio fazer com que essa relação fique mais estreita e propicie vida saudável para quem está na cidade e dignidade para quem está no campo.”
Para Cidinha, além da pandemia, os agricultores e agricultoras enfrentam outros desafios, justamente por estarem em Mato Grosso: os agrotóxicos e os transgênicos, advindos do modelo de produção agrícola em larga escala, o agronegócio. “A FASE participa da campanha permanente contra os agrotóxicos e a favor da vida porque entendemos que, por Mato Grosso ser um grande consumidor de agrotóxico, nós precisamos denunciar. Às vezes as pessoas não enxergam que Mato Grosso tem agricultura familiar de tanto que o agronegócio tem visibilidade. Nós queremos dar visibilidade a esses impactos, ao mesmo tempo mostrar as experiências em agroecologia. Os camponeses estão resistindo mas o agrotóxico é um grande problema para a agricultura familiar.”
Ela explica que diversos assentamentos estão rodeados por fazendas que fazem pulverização aérea de agrotóxicos. “E quem tem que provar que seus alimentos não têm agrotóxicos para obter certificação são os agricultores e agricultoras familiares. Com apoio do governo federal, vários princípios são liberados. Ano passado quase 500 foram aprovados. Alguns, inclusive, já foram banidos da União Europeia e no Brasil são liberados.”
“O transgênico também é um problema. A comunidade Mutuca, localizada na Baixada Cuiabana, tem o milho ‘caiana’ que é plantado pelos quilombolas há mais de cem anos. Imagine o risco que se corre de ser contaminado por transgênicos. Por conta disso, a FASE fez doação de sementes para diversas comunidades”, diz.
A agrônoma explica que um dos objetivos é trabalhar com territórios livres de transgênicos porque os agricultores ficam menos suscetíveis aos transgênicos. Além dos transgênicos e dos agrotóxicos, ela destaca a mineração como outra ameaça para as comunidades que produzem alimentos.
“O que eu sou, eu sou em par. Não cheguei, não cheguei sozinha”
Apesar das dificuldades do caminho escolhido para viver e trabalhar, Cidinha diz que busca energia para continuar nas pessoas que também lutam pela vida. “Escutar das mulheres a importância de ter se mantido firme durante a pandemia, e buscar ajuda e doações para que elas se mantenham no campo me emociona. Faz muita falta ter contato com as pessoas e a gente acaba ficando mais triste porque é o que dá motivação.”
Quando o peso do mundo sobrecarrega seu dia, a exemplo do anterior à entrevista, ela reflete sobre sua trajetória e renova sua força: “Na FASE temos pessoas atuando há 50 anos e que ainda se animam para contribuir. A FASE vai completar 60 anos em 2021. Eu estou há quase 30 anos e quero dizer que ainda tenho força para continuar diante de tantos retrocessos. Não dá para imaginar fazer as coisas sozinha. Nós acreditamos no coletivo. Eu percebo que nós mulheres somos mais persistentes, a gente não desanima por qualquer coisa”, finaliza.