Aos 36 anos, Alexandra Mendes Leite vive na aldeia Acorizal, na Terra Indígena Portal do Encantado, e se apresenta como indígena do povo Chiquitano. Mas, nem sempre foi assim. Ela só percebeu que sua vida seria singular, a partir dos 12 anos, quando foi continuar os estudos na cidade porque ainda não havia escola com ensino médio na comunidade.
“As pessoas da escola e da cidade falavam: ‘essa menina não é daqui, ela é índia’. Minha mãe e meus avós não tinham me falado sobre a história do meu povo. A gente percebia uma diferença na maneira como éramos tratados pelo Exército. Nós crescemos com algumas perguntas: por que não podemos nos reunir? Falar? Contar a nossa história? Quando tivemos contato com outras pessoas, na escola, nós percebemos que era porque somos indígenas.”
O retorno para a aldeia ocorreu alguns anos depois, quando Alexandra já estava casada. Além das novas tarefas como mãe e esposa, ela se inseriu nas lutas da comunidade: “pela demarcação da terra, pela nossa identidade e reconhecimento como povo Chiquitano”, diz.
A ocupação ancestral do território pelo povo Chiquitano precede a definição geopolítica contemporânea do Brasil. Na fronteira do lado brasileiro, há famílias Chiquitano vivendo nas áreas rurais e urbanas dos municípios de Vila Bela da Santíssima Trindade, Pontes e Lacerda, Cáceres e Porto Esperidião. Na Bolívia, as aldeias e famílias estão no departamento de Santa Cruz, e nas províncias Nuflo de Chaves, Velasco, Chiquitos e Sandoval.
“O povo Chiquitano foi constituído a partir de um amálgama de grupos indígenas aldeados no século XVII pelas missões jesuíticas. Habitantes da região de fronteira entre Brasil e Bolívia, foram compulsoriamente envolvidos em conflitos políticos e diferenças culturais decorrentes de uma divisão territorial que não lhes dizia respeito”, explicam a professora e antropóloga Joana Aparecida Silva e o indigenista José Eduardo Moreira da Costa, em verbete publicado no site do Instituto Socioambiental.
Os anos 2000 na aldeia Acorizal
Durante a conversa com Alexandra, ela citou duas conquistas fundamentais para a sua aldeia: o processo de identificação, iniciado em 2002, e declaração da Terra Indígena Portal do Encantado e a construção da Escola Estadual Indígena Chiquitano. A última atualização do processo ocorreu em 2011, com a publicação da posse permanente. A demarcação administrativa ainda não foi feita pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Em 2005, a nossa escola com ensino médio começou a se tornar realidade. O currículo é diferenciado e foi por meio dela que conseguimos recuperar algumas práticas que tinham sido quase perdidas: a nossa língua materna, a pintura, alguns rituais e sementes”, relembra.
A língua materna “Chiquito”, “pequeno”, em castelhano, é ensinada na escola, além de práticas culturais e agroecológicas que são trabalhadas com a participação dos anciãos da comunidade. “Hoje, a nossa juventude pode cursar o ensino médio na aldeia. Eles aprendem sobre o Curussé, fazem os instrumentos como a peneira e o apá, e também os trançados, os artesanatos. Quando a pessoa tem seus 14 ou 15 anos, a comunidade, os professores, as lideranças, já preparam os jovens para os dois mundos, porque a tecnologia está dentro da aldeia. Os jovens aprendem e também levam a nossa cultura para os não indígenas. Assim, eles sobrevivem aqui dentro e lá fora”, diz a líder Alexandra.
“Já temos muitos jovens formados em universidades públicas como Unemat e UFMT, e em particulares também. Meus dois meninos já moraram em São Paulo, Goiânia, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Eles jogam futebol e já viajaram bastante. Por conta da pandemia, eles voltaram para a aldeia. Mas eles não perderam a nossa cultura.”
Mulheres indígenas organizadas – Takiná
Também foi no fim da década de 2000 que Alexandra se inseriu na Organização de Mulheres Indígenas Takiná (Takiná), filiada ao Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad). “Eu entrei na Takiná em 2009. Eu fui a segunda jovem do povo Chiquitano a participar da associação. A primeira foi a Jorenilda, hoje ela é enfermeira e mora em Cuiabá. O espaço que eu tenho hoje na comunidade foi conquistado por meio da Takiná. Tenho apoio das lideranças dentro da aldeia e fora também”, relembra.
“Mas não foi de um dia para o outro. Já são dez anos atuando na Takiná. Às vezes eu ainda encontro alguma barreira. Quando eu fui para a organização das mulheres eu vi que era um mundo diferente. Você tem contato com muitas culturas. Havia muito conhecimento preso, que você não podia expor dentro da aldeia, mas era possível falar entre nós. A gente trabalhou isso na Takiná, nos eventos, nas oficinas, nas cidades e nas aldeias, e isso foi crescendo, ganhando visibilidade. Nós levamos essa autonomia para a aldeia.”
Por conta da pandemia causada pela Covid-19, as ações presenciais da Takiná foram suspensas. Houve a tentativa de realizar algumas atividades em formato virtual, mas Alexandra relembra que nem todas as aldeias de Mato Grosso têm acesso à internet.
Cenário atual e perspectivas para o futuro
Em sua aldeia, ela explica que as mulheres também se dedicam à agricultura. Alexandra é autônoma e atua na Associação Niorsch Haukina, localizada na aldeia Acorizal, na parte de logística (distribuição e transporte) dos alimentos orgânicos produzidos na comunidade. “Só não plantamos arroz. O restante, verduras, hortaliças e frutas, produzimos aqui na aldeia. Agora, nós vendemos para um mercado em Cuiabá porque somos certificados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento como produtores orgânicos. Mas, antes da pandemia, nós vendíamos em feiras na cidade de Porto Esperidião”, explica.
O desemprego é um dos reflexos da pandemia na aldeia. “Algumas pessoas foram para a roça, outras estão fazendo artesanato, outras mexendo com costura, outras fazendo pão. Estamos nos virando e tentando fortalecer os jovens. Eles fazem artesanatos e postam nas redes sociais. Vendemos on-line, entramos nesse mundo.”
Além da pandemia, o povo Chiquitano tem enfrentado outras questões: “A gente está passando por um momento muito difícil. Já tivemos invasão de madeireiros, incêndio que destruiu mais de 90% do nosso território, poluição do nosso rio, discriminação… Nós passamos um momento muito difícil com o rio Tarumã. Eu fiquei muito triste, abalada, porque esse rio é a nossa vida. Se o rio secar é um povo que está morrendo. É uma cultura que vai embora. Quando você vê o seu território sendo destruído você sabe que é uma história que está morrendo também”, diz Alexandra.
Em janeiro deste ano, o Formad organizou uma ação em rede e noticiou a denúncia apresentada aos Ministérios Públicos Federal e Estadual, em Mato Grosso, por conta do desmatamento ilegal e represamento na cabeceira do rio Tarumã, principal fonte hídrica para as quatro aldeias da TI Portal do Encantando, especialmente a Acorizal. A água do rio também era utilizada para banho e irrigação das hortas e quintais que produzem os alimentos orgânicos, uma das fontes de renda da comunidade. No dia 5/3, o Ministério Público Federal em Mato Grosso ajuizou ação civil pública (ACP) e determinou a prisão preventiva do autor dos crimes ambientais na cabeceira do rio. A comunidade aguarda que a justiça seja feita.
“Quem é liderança fica sendo enxergado com maus olhos porque denuncia e fala. Não sou só eu que vejo. Às vezes eu consigo falar. As mulheres da aldeia conseguem falar para mim mas não conseguem falar para você, por exemplo. Já é um espaço conquistado quando ela consegue falar porque eu consigo transmitir o que ela sente. Isso para mim é uma conquista porque antes não havia esse espaço. Espero dias melhores. Meu sonho é ver o nosso território demarcado. E que as mulheres conquistem espaços cada vez mais. Nós temos que buscar a nossa autonomia. Nós temos que nos valorizar. Se ficar esperando que alguém nos valorize, não vamos conquistar. Eu caí muitas vezes. Não foi fácil conquistar o meu espaço, mas eu não desisti. E eu não desisto”, finaliza a líder do povo Chiquitano.