Resistência de comunidades quilombolas de Poconé é reconhecida como exemplo de vigilância popular em saúde

Encontro definiu um plano de ação para fortalecer iniciativas já existentes.

Crédito da foto: Andrés Pasquis

Por Bruna Pinheiro/Formad

O “escurecimento” da discussão de questões relacionadas a comunidades quilombolas de Mato Grosso mostra-se cada vez mais necessário, com participação de pessoas negras nos espaços de controle social e como protagonistas de suas próprias experiências, uma vez que estes grupos já vêm desenvolvendo um importante papel de vigilância popular em seus territórios. 

O fortalecimento deste trabalho foi discutido na última sexta-feira (22), entre representantes quilombolas de seis comunidades de Poconé e do Pantanal, integrantes da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq-MT), FASE-MT, representantes do Ministério da Saúde, da Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso, agentes de saúde da família do Distrito de Chumbo, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz do Ceará) e do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast/UFMT). A atividade resultou em um plano de ação que tem como objetivo fundamentar a construção de políticas públicas voltadas para quilombolas no estado.

Mulher quilombola, engenheira agrônoma e educadora da FASE-MT, Fran Paula conta que o trabalho de vigilância popular em saúde nas comunidades quilombolas é fruto da construção e conscientização de integrantes desde sua ancestralidade. Na resistência e luta por territórios saudáveis, a atuação vem em duas vertentes. Na primeira, quilombolas alertam e denunciam quanto aos impactos do modelo exploratório e do agronegócio no Pantanal, que inclui a expropriação de terras de comunidades, contaminação de águas e do meio ambiente, além de conflitos para as comunidades. 

Já a segunda frente de atuação conta com ações de promoção da agroecologia, defesa de territórios e biodiversidade, através do manejo agroecológico e organização social de quilombolas. Em Mato Grosso, são 134 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Zumbi dos Palmares, sendo a maioria na Baixada Cuiabana/Pantaneira. Somente em Poconé, estão 28 delas. Na maioria, ou em quase todas elas, os impactos de monoculturas, principalmente, com o avanço da soja no estado, vem agravando direitos fundamentais como o acesso à água de qualidade.

“A resistência destes grupos é o que já entendemos como vigilância permanente e popular em saúde. É um trabalho de forma coletiva, em rede, com organizações que atuam nas comunidades, como a Conaq. A ideia é pensar em soluções conjuntas e fortalecer iniciativas já existentes”, pontua Fran.

Em reconhecimento a estes esforços, a oficina territorial de pesquisa-ação em Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT) teve a comunidade quilombola do Chumbo como cenário e participação de representantes de outras cinco comunidades quilombolas do Pantanal. Nela, quilombolas, integrantes da Conaq, FASE-MT, das três esferas do Sistema Único de Saúde (nível federal, estadual e municipal) e pesquisadores da Fiocruz e Neast/UFMT se reuniram para uma “troca de experiências” e discussões sobre a realidade das populações, suas principais demandas e conquistas já alcançadas.

O protagonismo de quilombolas pela luta de seus territórios e o escurecimento de espaços para ampliar o debate são algumas das bandeiras defendidas pela coordenadora do Conaq em Mato Grosso, Laura Ferreira da Silva. Segundo ela, além da vigilância popular em saúde já organizada por povos tradicionais, é fundamental fortalecer a resistência das populações negras no estado. Ao longo da atividade, o orgulho e respeito aos ancestrais, a valorização da identidade negra e a importância da defesa de seu povo foram reforçados pelos quilombolas, principalmente, pelas mulheres que lideram muitas das comunidades em Mato Grosso.  

“A nossa forma de mostrar que existimos é resistir. Já nascemos em um lugar onde temos que lutar desde cedo. A permanência em nossos territórios é em respeito à ritualidade, a ancestralidade, ao nosso espaço de direito. Aprendi com os meus avós, com a minha mãe e assim acontece com o povo quilombola. A vigilância popular para nós vem desde o uso de ervas medicinais ensinado pelos mais velhos, até a provocação feita hoje por quilombolas que alertaram, por exemplo, sobre a qualidade da água nas comunidades. É preciso escurecer a discussão para que sejamos nós os pesquisadores e não os pesquisados”, destaca Laura.

Experiência que virou exemplo

A vinda de pesquisadores da Fiocruz Ceará, órgão ligado ao Ministério da Saúde, para Mato Grosso é uma das etapas do Participatório em Saúde e Ecologia dos Saberes. Em fevereiro deste ano, foram abertas as inscrições para o cadastro de experiências de comunidades e/ou territórios com ações em vigilância popular. A iniciativa é coordenada pelos pesquisadores Fernando Ferreira Carneiro e Ana Cláudia de Araújo Teixeira.

Entre as experiências selecionadas está a denúncia feita em 2021 pelas comunidades quilombolas do Pantanal ao Fórum de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos em Mato Grosso, coordenado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), e ao Ministério Público Federal (MPF). O alerta foi quanto ao resultado de uma pesquisa realizada pela FASE-MT e o NEAST/UFMT que apontou a contaminação das águas que abastecem as comunidades por oito tipos de agrotóxicos, dentre eles, cinco estão proibidos na União Europeia. Os resíduos foram detectados nas águas de rios, poços artesianos, água da chuva, reservatórios e tanques de piscicultura. 

De acordo com a professora e coordenadora do Neast/UFMT, Márcia Montanari, o conjunto de comunidades quilombolas de Poconé se diferencia por trazer questões muito particulares do território pantaneiro, como o avanço do agronegócio e ampliação da mineração. Ela ressalta ainda que a demanda foi originada após observação de características diferentes na água, como o odor e sintomas de intoxicação. O que para a professora demonstra o que é de fato a vigilância popular em saúde. 

“A entrada da soja no Pantanal era algo que não se via. Isso altera o uso da terra, modos de relação e trabalho de consumo, sistemas tradicionais de produção, além de impactos à saúde humana e meio ambiente. A resistência da população quilombola mostra a vontade de existir por resistir mesmo, manter viva sua tradição e cultura e proteger o Pantanal. É uma experiência que pode trazer novos elementos para a vigilância popular em saúde que esta população já faz.”

Durante a apresentação do Participatório aos quilombolas, o coordenador da pesquisa-ação da Fiocruz do Ceará, Fernando Ferreira Carneiro, explicou que o objetivo é dar visibilidade a importantes iniciativas de comunidades e povos tradicionais. “A experiência das comunidades quilombolas do Pantanal está entre as 10 selecionadas em todo o Brasil. Ela representa o Mato Grosso e é um exemplo de luta que merece reflexões.” 

Após rodas de discussão, com divisão de grupos e dinâmicas com os quilombolas, um Plano de Ação foi construído em conjunto indicando as principais necessidades da população. Fran Paula da FASE-MT ressalta que a atividade acontece em momentos de grandes retrocessos no cenário de políticas públicas e direitos quilombolas, mas que o enfrentamento a ameaças é necessário. “Daremos continuidade ao fortalecimento das redes de agroecologia e a luta por políticas públicas para comunidades quilombolas. Este plano visa fortalecer e ampliar a atuação em rede, envolver outros grupos e organizações para a garantia de conquistas”, finaliza.

Compartilhar Notícia

Últimas Notícias