Foto: Marcos Amend
Por Bruna Pinheiro / Formad
A tentativa de extinção do Parque Estadual Cristalino II e o papel do Judiciário em proteger a área são alguns dos elementos abordados no artigo científico “O embate entre direitos patrimoniais versus direitos fundamentais à luz do caso da Unidade de Conservação Parque Estadual Cristalino II”, de autoria da advogada e consultora jurídica do Formad, Bruna Medeiros Bolzani. O trabalho está entre os 51 selecionados para compor o livro recém-lançado: “Direitos Humanos e Democracia: desafios no contexto pós-pandêmico” e explora questões relacionadas às Unidades de Conservação para levantar a discussão sobre o uso do Direito em pautas voltadas ao meio ambiente.
Já no início do artigo, que tem a coautoria de Rodrigo de Medeiros e Gabrieli de Camargo, é citado o dilema entre a cultura desenvolvimentista da economia no Brasil, que ignora a degradação ambiental, e a criação e efetivação de políticas públicas de proteção ambiental. O artigo salienta que o país “nunca conseguiu superar a colonialidade presente em suas instituições e nos interesses econômicos que predominam sobre a política brasileira. Dessa forma, termina por reproduzir uma marcha, em nome do desenvolvimento, que quer, cada vez mais terras para serem exploradas, produzindo commodities, principalmente, para o mercado internacional. Esta lógica estimula a exploração de madeiras, a expansão do agronegócio e ampliação da mineração, inclusive, em terras indígenas e áreas que, pelo ordenamento jurídico, deveriam ser protegidas, na busca pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
Criado em junho de 2000 na região entre Alta Floresta e Novo Mundo (MT), o Parque Estadual Cristalino I teve a área ampliada um ano depois, tornando-se o Parque Estadual Cristalino II, por meio do decreto 2.628/2001. Juntas, as duas Unidades de Conservação somam 184,9 mil hectares ao norte de Mato Grosso, em uma região que sofre constantes ameaças e ataques com o avanço do agronegócio. O local abriga espécies raras da fauna e flora dos biomas Amazônia e Cerrado e já foi tema de diversas reportagens produzidas pelo Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) a respeito da sua importância e os riscos ao meio ambiente, em caso de extinção do Parque.
O artigo aponta que, assim como ocorre em outros lugares da Amazônia brasileira, o Cristalino é ameaçado por crimes ambientais como a grilagem que já atinge cerca de 74% do parque, o desmatamento, as queimadas, a extração ilegal de madeira e a pressão do garimpo. E é neste cenário que o embate entre direitos patrimoniais x direitos fundamentais é discutido pelas autoras. É relembrada a Ação Declaratória de Nulidade de Ato Administrativo, interposta pela empresa Sociedade Comercial e Agropecuária Triângulo que, com sede em São Paulo, pediu a extinção do Parque. A consultora jurídica do Formad questiona os argumentos utilizados pela empresa que alega ter sido prejudicada em seus direitos patrimoniais por não ter sido indenizada no momento da criação do Parque e uma consequente desapropriação e regularização de terras, conforme rege a lei.
“Ao invés de agir de acordo com os ditames constitucionais de forma a requerer a indenização após a desapropriação, a autora do processo optou pela opção mais gravosa ao interesse social das presentes e futuras gerações ao requerer a extinção do Parque, isto é, optou por investir contra direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado cuja titularidade é de todas/os, inclusive das futuras gerações”.
Inércia do Estado é mencionada
O artigo relembra o histórico judicial do Cristalino, que contou primeiramente com a improcedência do pedido, mas que com o recurso da empresa conseguiu levar o caso para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Na instância federal, a prescrição foi derrubada e o processo retornou ao TJMT, que deu decisão favorável ao recurso da empresa. Sem qualquer intervenção judicial do Governo estadual, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) enviou ofício à SEMA-MT para a extinção do Parque. A decisão foi cancelada por erro judicial já que o Ministério Público Estadual não havia sido intimado, o qual apresentou recurso. Em seguida à decisão que sinalizou pela extinção do Parque, uma série de incêndios nunca vistos na área foram denunciados por organizações socioambientais. No Cristalino também houve um aumento de cerca de 126% no número de pedidos para exploração de ouro, somente em 2022.
“Com efeito, é maquiavélica a tentativa de subordinar os direitos fundamentais aos direitos patrimoniais, como se vê na ação judicial que visa extinguir a Unidade de Conservação do Parque Estadual Cristalino II por afetação às propriedades privadas da autora, com base em suposto vício insanável à época da criação desta, cuja alegação é afastada perante as Cortes Superiores. Frisa-se, no direito, os fins não justificam os meios. Nesse caso, o meio utilizado foi a ação judicial para extinguir-se o Parque sob argumentos técnicos voltados à época da criação deste, enquanto os fins versam sobre a manutenção de interesses privados patrimoniais da empresa”.
Por fim, o trabalho constata a incompatibilidade do uso do direito no caso do Cristalino, nos âmbitos constitucional e internacional voltados à proteção do meio ambiente, criando o embate entre direitos patrimoniais e fundamentais, sendo os patrimoniais subordinados aos fundamentais. O artigo alerta ainda sobre a necessidade de reprovação pelo ordenamento jurídico brasileiro do processo que tenta extinguir o Parque. “Os direitos fundamentais ambientais necessitam prevalecer frente aos direitos patrimoniais, tanto para proteção e conservação da Natureza quanto para a proteção das presentes e futuras gerações”.
O artigo “O embate entre direitos patrimoniais versus direitos fundamentais à luz do caso da Unidade de Conservação Parque Estadual Cristalino II” esteve entre os trabalhos apresentados no X Seminário Internacional “Direitos Humanos e Democracia”, realizado em novembro de 2022. O evento foi promovido pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e resultou na publicação do livro lançado em janeiro deste ano. Leia o artigo na íntegra.