Expansão do agronegócio faz doença espalhar entre índios e comunidade rural em MT

O desmatamento nos municípios da região de Sapezal, uma das grandes fornteiras agrícolas de Mato Grosso, no médio Oeste do Estado, está mudando hábitos de ratos silvestres da família sigmodontinae, transmissores da hantavirose.

Transmissor encontra alimentos fartos nas lavouras e silos das grandes plantações no MT – Foto de ilustração

A reportagem é de Keka Werneck, publicado no 24HorasNews em 03/06/2014

Essa doença, de elevado risco de morte, já fez, nos últimos sete anos, mais de 50 vítimas fatais na região onde vivem mais de 2 mil indígenas, que são os mais vulneráveis à propagação da enfermidade, junto com toda a população da zona rural. A hantavirose ocorre em todo Mato Grosso, considerado endêmico para a doença.

 Entre os Paresi, há casos suspeitos e confirmados, mas sem óbitos. Há quatro meses, uma indígena ficou internada em estado grave, mas conseguiu vencer a doença. Não existe tratamento contra a hanseníase. A superação só é possível se o próprio corpo tiver forças para reagir.

 “Já fomos avisados do perigo”, informa a fiscal da Associação Indígena Himerese, Maria de Fátima Paresi, de 43 anos. Segundo ela, há cinco anos morreu um trabalhador rural de uma fazenda próxima, onde há plantio de soja e milho. “Nessa época, fomos assistir a uma palestra na fazenda. Aqui na aldeia, eles mandam entregar cartaz e pedem que a gente mude de comportamento, que não deixe resto de comida em volta da casa, que não fique levantando poeira quando varre e muita coisa mudou por aqui, pelo menos na minha casa, desde que aconteceu essa morte”.

 O alerta já chegou também às aldeias dos Nambiquara, que ficam bem próximas a fazendas, onde já ocorreram óbitos por hantavirose. O indígena da etnia sabanê, Napoleão Índio do Brasil, de 65 anos, conhecido como “Maracanã”, mora na aldeia Vale do Buriti, na Terra Indígena Tirecatinga, em Sapezal. O rato silvestre, segundo ele, é muito comum por ali. “Volta e meia eles aparecem. Na minha aldeia, por enquanto ninguém adoeceu, mas de repente pode acontecer e essa doença é ruim”, comenta o indígena. “O que acaba com eles são os gatos, mas é só isso que acaba com eles, mais nada”.

 A expansão do agronegócio na região, da qual Sapezal é uma das grandes referências, dá condições ideais à propagação da doença porque, além do desequilíbrio natural provocado pelo desmatamento que deixa o rato sem predadores naturais, esse roedor encontra fartura de alimento nos silos para armazenagem de grãos, principalmente milho e milheto, além das lavouras.

 A redução do número de gaviões e cobras, por exemplo, que são os dois principais predadores do roedor, também garante a proliferação. “Você tira os principais predadores dos roedores e oferece milho e milheto a eles. Para eles, não há comida melhor do que isso. Daí se cria um cenário muito propício para o roedor, que fica por ali engordando, procriando e expondo todo mundo ao risco de contaminação e morte”, explica o coordenador geral da OPAN, Ivar Busatto.

 O médico sanitarista Wanderlei Pignati, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), assegura que esse cenário da doença tem tudo a ver com o agronegócio, porque os fazendeiros, segundo ele, não se preocupam em erradicar o rato ou, quando muito, só cuidam de eliminá-lo nas proximidades dos silos. “Eles são atraídos por resto de safras, que caem no chão, e ficam por ali, nas redondezas. Então, se são eles que os atraem, teriam também que eliminá-los, mas não fazem isso”.

 A Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato) não assume essa responsabilidade para si. Afirma não ter conhecimento de estudos que assegurem que o roedor da hantavirose encontra no ambiente agrícola um cenário confortável. “O setor produtivo entende que não existe relação entre o agronegócio e a incidência da hantavirose. Este é um problema de saúde pública e que afeta e preocupa tanto o perímetro urbano quanto o rural”.

 Segundo Busatto, é bom reforçar que a doença não expõe somente indígenas ao risco, mas também os trabalhadores rurais e inclusive os proprietários das fazendas e seus familiares. “Os indígenas ficam mais vulneráveis porque têm uma relação muito próxima com a natureza e não vão se dar conta do perigo desse rato. Para eles, o rato é parte da natureza, com quem convivem tranquilamente”, aponta o coordenador da OPAN.

 A bióloga Alba Valéria Gomes de Melo, responsável por acompanhar a dinâmica desta doença pela Secretaria de Estado de Saúde (SES), reitera que os roedores encontram sim alimento em abundância na região superprodutora de grãos. “Nessa região há presença dos reservatórios da doença e isso foi confirmado através de captura de roedores realizada pelo Ministério da Saúde, Secretária de Estado de Saúde e Fiocruz”.

 A bióloga também lembra que, segundo estudos científicos, pode sim ocorrer essa relação entre desmatamento e hantavirose. “No desmatamento você destrói o habitat natural do animal transmissor e este sai em busca de alimento, água e abrigo e entra em contato com o homem podendo transmitir a doença”.

 Quem está muito assustada com essa situação é a pedagoga Maria Margareth Noronha Valentin, coordenadora do Departamento Indígena da Secretaria Municipal de Sapezal. Quando ela vai para as aldeias, usa máscaras protetoras contra o vírus, já que sabe dos riscos que ela também corre. “Há dois anos, morreu a psicóloga que trabalhava com a gente. Ela fazia esse mesmo trajeto. Após o diagnóstico, viveu só mais oito dias. Já morreu muita gente, principalmente em Campo Novo”, confirma.

 A hantavirose é uma doença viral, de alto grau de letalidade, e ainda não há medicamentos contra ela. O vírus transmissor é encontrado na urina e fezes dos ratos da família sigmodontinae, que saem ilesos. A forma de transmissão é pelas vias respiratórias. Os sintomas da hantavirose são a princípio similares a uma gripe. A doença causa desconforto respiratório agudo, insuficiência renal, pressão baixa e baixa oxigenação sanguínea.

 Mato Grosso é um estado endêmico para a doença, principalmente na região do Médio Norte e Norte. Nos últimos 10 anos, foram registrados 223 casos. A doença é inclusive de notificação obrigatória e os dados são organizados no Sistema de Notificação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinam-MS). O auge da doença foi em 2006, com 49 casos registrados.

Nas fazendas da região, não há também, conforme a própria Famato, um trabalho específico de combate ao roedor. O que há é que “nas propriedades rurais é necessário que um responsável técnico com ART realize os devidos controles de roedores”. A ART é um registro de capacidade técnica emitido pela entidade trabalhista a qual o profissional está vinculado.

 Não há uma grande política pública contra a doença. A prefeitura tem, preventivamente, borrifado com água sanitária os arredores das casas dos indígenas e da população rural como um todo de 15 em 15 dias. “Água sanitária é a única coisa que repele o rato”, apregoa Margareth.

 Além disso, ela diz que tem massificado informações sobre a prevenção à doença nas aldeias, propondo algumas mudanças de comportamento. “Os índios ficam muito assentados no chão, levantam poeira varrendo, andam descalços e isso os aproxima do vírus. A gente explica para não deixar sobras de comida do lado de fora das casas, não estocar e não fazer plantação perto de casa, manter as roças e hortas a uma distância de pelo menos 50 metros de casas”.

 A mudança do comportamento indígena não vai assegurar a erradicação da doença. “Acreditar nisso é uma esperança muito frágil”, adverte a assistente social Cleacir Alencar Sá, do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Cuiabá e da Casa de Saúde Indígena (Casai) em Tangará da Serra. “Os Nambiquara usam o chão até para dormir. Mas a questão não é só o chão, é o ambiente inteiro, porque a doença se pega no ar, basta respirar”.

 Segundo ela, “os índios ficam totalmente vulneráveis naquela região e os municípios não têm nenhuma preparação para combater a doença. Há algum tempo, em Tangará, houve um caso de contaminação de um caminhoneiro, que nem lida direto com silos. Imagina o risco então de quem está mais próximo do rato. Acho que falta uma fiscalização ostensiva nos órgãos responsáveis pelo trabalho, porque, com água sanitária ou sem água sanitária, os indígenas e as populações rurais em geral vão continuar correndo o mesmo risco”.

 A hantavirose não é uma doença nova. “Mas vem ganhando proporções enormes em toda a região onde há plantio e garantia de alimentos aos roedores. É preciso vigilância urgente porque a enfermidade está se disseminando e podemos perder o controle da situação, se não tiver um trabalho educativo para mudar comportamento sem todas as áreas de lavoura”, alerta o coordenador geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN), Ivar Busatto.

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