O Instituto Chico Mendes, que administra as unidades, sequer foi consultado. Irregularidade rende o sexto processo do MPF contra o licenciamento da hidrelétrica
O Ministério Público Federal entrou com ação civil pública contra o licenciamento da usina hidrelétrica de São Manoel, prevista para o rio Teles Pires, na divisa do Mato Grosso com o Pará, pedindo a suspensão das licenças concedidas até agora. O MPF acusa o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) de ignorarem a existência de um mosaico de unidades de conservação que serão diretamente afetadas pela obra. Essa é a sexta ação judicial por irregularidades em São Manoel.
Além de ficar a menos de um quilômetro de distância da Terra Indígena Kayabi e ter desrespeitado a legislação que protege os povos indígenas, a usina de São Manoel também terá impacto direto e indireto sobre uma área considerada pelo próprio governo brasileiro como de relevância extremamente alta para a conservação da biodiversidade, com 17 unidades de conservação. A usina vai atingir em cheio o Mosaico da Amazônia Meridional, criado pelo Ministério do Meio Ambiente na região para proteção da flora e da fauna, incluindo espécies ameaçadas de extinção. A região também abriga um grande número de sítios arqueológicos.
“Os empreendimentos estão inseridos em área prioritária para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira. Do lado esquerdo e direito do rio há a área Am 043, abrangendo ambas as margens do rio Teles Pires, de importância biológica extremamente alta”, diz relatório dos técnicos do Ibama que embasou o licenciamento da usina.
Pela legislação brasileira em vigor, o licenciamento de obras de grave impacto em áreas assim exige que o Ibama consulte o Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelas unidades de conservação, além das secretarias de meio ambiente dos estados afetados (Pará e Mato Grosso) e do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pela gestão do patrimônio arqueológico. No caso da usina São Manoel, as regras do licenciamento foram diretamente violadas pelo próprio Ibama, que emitiu licença prévia e licença de instalação para o empreendimento sem nenhuma das consultas exigidas pela lei.
Tanto o ICMBio quanto o Iphan e as secretarias de meio ambiente dos estados informaram ao MPF jamais terem sido consultadas sobre a usina São Manoel. “Note-se que, em caso semelhante – referente à usina Cachoeira dos Patos – o próprio Ibama reconheceu a impossibilidade de dar continuidade ao licenciamento em razão de uma manifestação do ICMBio contrária à continuidade do projeto, tendo em vista que o empreendimento atingiria unidades de conservação”, lembra o MPF na ação judicial.
“A falta de consulta ao ICMBio e demais órgãos ambientais sobre as unidades de conservação e respectivas áreas de entorno resulta na falta de mensuração dos impactos. Essa omissão causa riscos de danos irreversíveis ao meio ambiente e à sociedade como um todo”, acrescenta.
O MPF demonstrou à Justiça que o Ibama não pode alegar desconhecimento sobre as unidades de conservação e o patrimônio arqueológico, porque fez questionamentos expressos sobre os dois temas no Termo de Referência que enviou à EPE para orientar os Estudos de Impacto Ambiental da usina. O empreendedor descumpriu o Termo (que é obrigatório) e mesmo assim o Ibama concedeu as licenças. “Algumas irregularidades e lacunas dos estudos foram transformadas em condicionantes, que até o momento seguem descumpridas”, diz a ação do MPF.
Direito da Natureza – O MPF alega na ação judicial que a forma como o licenciamento da usina de São Manoel ignora os impactos sobre a biodiversidade na região viola os direitos das futuras gerações, citando doutrina mais recente do direito que defende a equidade intergeracional.
“A equidade intergeracional nada mais é do que incorporar em cada decisão presente o impacto sobre as gerações futuras. Trata-se de algo novo em nossa civilização, mas não entre os habitantes das Américas quando da chegada dos europeus. A Confederação Indígena Iroquois, localizada na região dos Grandes Lagos, com ênfase onde hoje é o Estado de Nova Iorque (EUA), estabeleceu em seu princípio número um: em cada uma de nossas deliberações devemos considerar o impacto de nossas decisões nas próximas sete gerações”
O entendimento jurídico da equidade intergeracional já está assentado no direito internacional e na legislação brasileira por diversos instrumentos. A ação do MPF cita várias convenções internacionais e resoluções da ONU que tratam dos direitos das gerações futuras, para concluir: “e talvez a mais explícita e completa normativa internacional sobre o tema, a Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada no Brasil pelo Decreto 2519/1998. Ela impõe ao Brasil conservar e utilizar de forma sustentável a diversidade biológica para benefício de gerações presentes e futuras. Tudo está violado pelo projeto da UHE São Manoel.”
Para o MPF, “a consequência desse instituto é a necessidade de compreensão alargada do direito à vida. Este não pode mais ser entendido nos limites da teoria iluminista. É necessário vê-lo na proteção aos seres vivos presentes e futuros”.
Na ação, o MPF também traz a nova doutrina do direito da natureza, um debate acesso entre juristas de todo o mundo que procura superar o chamado antropocentrismo utilitário, segundo o qual o meio ambiente deve ser protegido apenas na medida em que suas condições afetam os seres humanos. Com o reconhecimento do direito da natureza, já assentado também em convenções internacionais e declarações multilaterais, procura-se impor limitações ecológicas à ação humana, a partir da compreensão de que a natureza possui valor intrínseco, não apenas instrumental.
“Não se está aqui defendendo uma mudança radical para a ecologia profunda. A humanidade continua sendo considerada, mas não como o centro da biosfera”, ressalta a ação do MPF, para em seguida acrescentar: “nada disso deve parecer estranho ao profissional do direito no Brasil. A legislação pátria já vem decretando o fim do antropocentrismo utilitário de há muito. Prova disso é o art. 225, § 1º, VII, da Carta de 1988 que dispõe expressamente sobre o dever do Estado e da coletividade em proteger a fauna e a flora”.
A ação do MPF pede a suspensão imediata do licenciamento e de qualquer obra da usina de São Manoel, para que os estudos sobre os impactos nas unidades de conservação e sítios arqueológicos sejam concluídos, com a devida consulta aos órgãos estatais responsáveis (ICMBio e Iphan). As licenças da usina de São Manoel ficaram suspensas por cerca de um mês por ausência de consulta prévia aos índios afetados. Mas foram liberadas por uma suspensão de segurança do presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Cândido Ribeiro.