O anúncio do governo federal de não repetir novas tragédias hidrelétricas na Amazônia acaba de ser novamente maculado. Numa região com mais de uma centena de pequenas e micro usinas, o maior projeto da sub-bacia do Juruena em tramitação até hoje, a UHE Castanheira caminha a passos largos. Teve as audiências públicas para a apresentação dos estudos ambientais marcadas pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) para o mês que vem sem esperar a manifestação da Funai, repetindo a prática de se adiantar para ver legitimado mais este projeto hidrelétrico como se os povos Apiaká, Kayabi, Munduruku, Rikbaktsa e Tapayuna fossem um mero apêndice ao trâmite de aprovação do empreendimento.
Prevista no Plano Decenal de Energia (PDE) do governo federal, a usina de Castanheira está envolta em muita controvérsia. Largou na frente na corrida para barrar os principais rios do Juruena, formador do Tapajós, porque seu lago de 94,7 km2 não toca diretamente nenhuma terra indígena ou unidade de conservação. Mas isso não faz deste empreendimento exemplo a ser seguido.
Castanheira não cumpre com um primeiro e essencial item no roteiro de qualquer projeto hidrelétrico: a justificativa de sua necessidade. Ela tão somente se refere ao PDE 2023 e ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC2) para “atender ao crescimento da demanda de energia no país para os próximos anos”, quando deveria explicar como um projeto hidrelétrico relativamente pequeno com uma grande variação sazonal no seu montante de geração e tão distante de centros de carga relevantes é realmente necessário.
Síntese dos impactos sobre as comunidades diretamente atingidas.
Muito barulho por nada
Previsto para gerar 140 MW, a usina garante entregar 98 MW de energia firme. Isso não representa nem 1% do que é consumido atualmente em Mato Grosso. Mas, em nome dessa insignificância, o Estado brasileiro está disposto a barrar cinco sextos do rio mais piscoso da sub-bacia do Juruena, já que a usina se projeta a apenas 120 km de sua foz. Isso poderá interromper para sempre o fluxo de peixes migratórios do Arinos, que não voltará mais a ostentar seus famosos festivais de pesca. Sob risco estão espécies como as matrinchãs, que têm maior valor comercial e são capazes de nadar por milhares de quilômetros desde suas áreas de berçário.
Qualquer perturbação nesse ambiente será drástica, com efeitos negativos de longo prazo, irreversíveis, de caráter cumulativo e considerada de grande magnitude sobre a população de peixes. Além disso, a muralha que deverá conter as águas caudalosas do Arinos ficará a cerca de 30km da cidade de Juara. Se conseguir segurar a volumosa quantidade de sedimentos que fazem deste o rio mais barrento do Juruena sem desgastar demasiadamente suas turbinas, como acontece hoje com as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, a população urbana poderá dormir tranquila. O mesmo não se pode dizer de dezenas de pequenas propriedades rurais, que serão diretamente alagadas pelo reservatório.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) é, neste caso, a maior interessada pelo empreendimento. Pudera. Conforme estudo recentemente lançado pela Conservação Estratégica (CSF-Brasil), a usina de Castanheira é inviável do ponto de vista financeiro e econômico. É prejuízo na certa para qualquer investidor privado, como outras grandes obras que o governo brasileiro empurrou goela abaixo, apesar de todas as evidências em contrário. Os povos do Juruena já aprenderam com essas recentes tragédias sociais e ambientais, e escolheram não manchar mais suas águas com quem, em vez de gerar energia, quer encher os cofres das construtoras em ano eleitoral.
Entrada das Comunidades Pedreira e Palmital. Área prevista para alagamento.
Violações aos direitos indígenas
A UHE Castanheira teve uma sorte, afinal: a de contar com um Estudo do Componente Indígena (ECI) primoroso, que deveria influenciar diretamente a decisão de não construir esta usina. Entre os principais impactos irreversíveis identificados destacam-se: restrição do acesso a áreas usadas nas atividades produtivas e limitação para obtenção de recursos naturais; alteração na organização social, política e cultural dos povos indígenas; intensificação dos conflitos interétnicos e interferência nas atividades de pesca de tracajás e coleta de ovos. Logicamente, por serem irreversíveis, nenhum problema seria reduzido com medidas mitigadoras. Ou seja, a usina é inviável do ponto de vista de seus impactos sobre os indígenas.
Embora o componente indígena não tenha se furtado a tecer uma longa análise sobre as implicações do empreendimento em território tradicional do povo Tapayuna, a EPE não aceitou que esta população, que ocupou imemorialmente uma vasta área no interflúvio Sangue-Arinos, fosse abrangida pelo estudo.
Os indígenas, por sua vez, aguardam até hoje a chance de terem acesso à pesquisa, a eles jamais encaminhada. “A população tem que ouvir e se expressar. Não levar dúvida pra casa. Onde está a pesquisa? Queremos cópia desse documento”, reclama Edgar Ipiny, do povo Rikbaktsa, que em novembro do ano passado participou de uma viagem organizada pela EPE para o canteiro de obras de UHE Teles Pires, atendendo a um pedido dos indígenas afetados pela UHE Castanheira. Eles queriam visitar um local já impactado por uma hidrelétrica para fazerem sua reflexão. “Estivemos lá no Teles Pires. Sentimos o que é uma barragem. A conclusão de todos que fomos é de que aquilo não é coisa para os povos indígenas e sim para o agronegócio. Ninguém contou pra gente, vimos pessoalmente”, relata Inipy.
“O que vocês precisam é de organização para não deixar acontecer. Nosso erro foi esse. A gente precisa se organizar melhor para combater esses empreendimentos”, considera Laureci Muo Munduruku, liderança da Associação Dacê, que pretendeu levar a experiência dos Munduruku do Teles Pires para o Juruena. “Vocês querem saber se saímos de lá tristes? Saímos com espírito mais forte para lutar contra essas usinas que estão aí. Estamos prontos para defender o nosso rio Juruena vivo”, disse Erivan Morimã, do povo Apiaká.
Andreia Fanzeres é jornalista, coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e membro do GT-Infraestrutura.