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Sociedade civil alerta doadores sobre compromissos socioambientais em MT

Carta de alerta a financiadores ao estado.

No dia 21 de maio de 2018, o Fórum Mato-Grossense de Mudanças Climáticas (FMMC), com parte de seu conselho gestor, reuniu-se com representações da agência de cooperação alemã GIZ, do Banco Alemão KFW, Reino Unido (BEIS), Estratégia Produzir, Conservar e Incluir (PCI), Funbio, quilombolas, extrativistas membros da coordenação do Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad). Na reunião, foi apresentada em linhas gerais a estratégia do Programa Redd For Early Movers (REM) e o status do processo de construção de uma proposta para a repartição de benefícios e governança, além do fluxo de recursos.

O Formad, através de seu secretário-executivo, entregou uma carta que alerta para o descaso das autoridades mato-grossenses sobre os compromissos socioambientais assumidos, considerando que medidas estruturantes das políticas públicas capazes de reduzir o desmatamento não estão sendo minimamente implementadas e sequer há abertura para diálogo junto aos tomadores de decisão a fim de que reivindicações básicas sejam atendidas.

Ao final, a agência GIZ e a representante do banco alemão concordaram em ampliar o diálogo para compreensão do alcance do programa para populações que não vêm acompanhando este processo, como assentados, povos e comunidades tradicionais principalmente. Este diálogo deverá ser realizado sob a forma de um mapeamento no segundo semestre reunindo lideranças desses e outros segmentos do estado para compreender o programa e apresentar questões pertinentes.

Reunião Formad e Conselho Gestor REDD

 

Leia a carta na íntegra:

A/C Ilma. Sra Dr. Christiane Ehringhaus

Coordenadora – REDD for Early Movers Program

KFW/ Alemanha

A/C Ilmo. Sr Leslie Marin- Lascano,

Departamento Clima e Energia – BEIS/ Reino Unido

Assunto: Alerta sobre descaso com a política socioambiental no estado de Mato Grosso no contexto de implementação do Programa Redd+ for Early Movers (REM).

Prezados Senhores,

As 30 organizações filiadas ao Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) manifestam grande preocupação a respeito do pouco empenho do estado de Mato Grosso no alcance das metas do programa Produzir, Conservar e Incluir, bem como na implementação das políticas sociais e ambientais que justificariam o “pioneirismo” em acessar recursos do REM. As investidas do poder executivo e do legislativo contra o meio ambiente em Mato Grosso seguem sendo acintosas, o que levanta sérios questionamentos sobre o real compromisso e a capacidade de utilização eficiente dos recursos do REM dos governos alemão e britânico nesse cenário.

Desmatamento descontrolado

Mato Grosso é o segundo estado com as maiores taxas de desflorestamento na Amazônia, perdendo apenas para o Pará. Mato Grosso concentra 28% de toda a área desmatada na Amazônia Legal desde 2004, sendo que aproximadamente 98% dessa área foi convertida ilegalmente. Para conter o desmatamento, órgãos federais e estadual elaboraram e implementaram diferentes políticas de monitoramento e controle, bem como mecanismos de incentivo para cadeias produtivas com desmatamento zero. De 1996 a 2011, a taxa de desmatamento no estado passou de 6.543 km² para 1.120 km² o que representa uma redução de 83%.

Contudo, apesar dos resultados positivos observados no passado, as ações continuam insuficientes para conter o aumento da área desmatada. Entre 2011 e 2017, a taxa de desflorestamento aumentou 35% e o estado está firmando um patamar de desmatamento acima de 1.500 km² por ano. Nos últimos 5 anos, 10 municípios concentraram 44% das áreas desflorestadas no estado.

Além da ilegalidade em si, o desmatamento de Mato Grosso se relaciona com diversas pautas socioambientais. Acirrando conflitos sociais e violências rural, a sua dinâmica está estreitamente relacionada com especulação fundiária, invasões e ameaças aos territórios das populações tradicionais. Os impactos ambientais do nível de desmatamento atual também são trágicos, levando Mato Grosso a ter uma responsabilidade mundial com as mudanças climáticas[1] e com as matrizes hídricas do continente americano. Finalmente, o desmatamento de Mato Grosso continua intimamente ligado ao desrespeito da ordem democrática brasileira por uma parte da sua população, já que inúmeras propostas de lei e regulamentações tentam reduzir as normas de proteção da floresta para legalizar crimes ambientais já cometidos por uma minoria da população com poder nos congressos estaduais e federal.

Vale lembrar, por fim, o quanto o desmatamento é pouco conhecido pelo público em geral. Alguns mitos permanecem fortemente estabelecidos na sociedade. É difundida por exemplo a ideia que a agricultura familiar, e mais especificamente os assentamentos são responsáveis pelo desmatamento atual, quando a proporção de desmatamento em assentamento continua estável, ocupando entre 15 e 20% da taxa anual. Outra ilustração desses mitos é que não se sabe exatamente qual a parte de ilegalidade na taxa de desmatamento, quando na verdade, esses dados estão hoje disponíveis e representam cerca de 90% do desmatamento total.

Direitos humanos ameaçados

Mato Grosso ainda se destaca em relação às ameaças contra direitos humanos com altas taxas de violência e mortes no campo, mas também estatísticas de trabalho escravo.

Assim, em 2016, o estado assumiu o primeiro lugar em relação a violência rural contra pessoas, contra ocupação e posse e conflitos por terra. Nessas diferentes categorias, Mato Grosso ocupa respectivamente o lugar de 4º e 3º estado mais violento do país (CPT, 2017). Em abril de 2017, 09 trabalhadores rurais foram mortos em Colniza (MT) por pistoleiros. Em novembro do mesmo ano, o prefeito de Colniza foi assassinado a tiros no centro da cidade.

De acordo com o Ministério do Trabalho Emprego (MTE) no Brasil, desde 1995, mais de 52 mil pessoas foram “libertadas” após flagradas em condições análogas à escravidão em canteiros de obras, carvoarias, oficinas têxteis e principalmente em fazendas de pecuárias e outras propriedades agrícolas. Cerca de 10% dessas estatísticas vêm de Mato Grosso, já que ainda segundo o MTE, entre 2004 e 2014, em Mato Grosso mais de 5 mil pessoas foram retiradas do trabalho análogo à escravidão. Desse total, a maior parte estava em fazendas de gado e nas produções florestais.

No início de abril de 2017, o Ministério do Trabalho em Mato Grosso, libertou 31 trabalhadores em Nova Maringá[2]. Foi a maior operação de resgate no estado desde 2009, quando 78 trabalhadores encontrados nesta condição. Eles executavam tarefas por até 16 horas. Faziam manejo de soja, além de descarregar os caminhões, colocavam a carga de grãos em armazéns e cuidavam da limpeza no local.

Falta de gestão de unidades de conservação

Em vez de fomentar melhorias na gestão e implementação das unidades de conservação como estratégia para coibir o desmatamento, o estado vem demonstrando de forma cada vez mais clara seu desinteresse pelo tema. De acordo com informações da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) dos R$ 11 milhões autorizados para a gestão de unidades de conservação no estado, em 2016 só foram executados R$ 1,7 milhões. Em 2017, dos R$ 8 milhões autorizados, só metade disso foi usada. Em 2006 os deputados de Mato Grosso tentaram reduzir o Parque Estadual do Cristalino em quase um terço. Em dezembro de 2016, eles reduziram pela metade a Reserva Extrativista Guariba Roosevelt, a única unidade de conservação deste tipo no estado. Em abril de 2017, 20 dos 24 deputados estaduais de Mato Grosso aprovaram um projeto que susta o decreto 1796/1997, que estabelece o Parque Estadual da Serra de Ricardo Franco, uma área de 158 mil hectares com rios, cachoeiras e vegetação que une Cerrado, Floresta Amazônica e Pantanal e representa um relevante corredor ecológico binacional.

Ao mesmo tempo, tramitam outros projetos do executivo na contramão dos interesses e metas compactuadas no âmbito da PCI e em outras políticas públicas estaduais em Mato Grosso. Este é o caso do PL 591/2017, que propõe remover a proteção estabelecida por lei desde a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) Cabeceiras do Rio Cuiabá, uma unidade de conservação chave para a regulação hidrológica e conservação ambiental da região. Essa proteção proíbe hoje que sejam realizados desmatamentos na APA. Mas cerca de 40% de sua área total (460 mil hectares) já foram perdidos. Apesar disso, a lei vigente na APA ainda garante a proteção de mais de 98 mil hectares de vegetação nos municípios de Rosário Oeste e Nobres, cerrado mato-grossense que pertence a áreas de alto valor para a conservação, que com a nova proposta estariam ameaçadas. O projeto de lei do executivo representa, portanto, uma ameaça direta às metas da PCI de manutenção da cobertura de vegetação nativa, bem como às metas de produção sustentável. Além disso, colocaria em suspeição o real engajamento do poder executivo com a sustentabilidade ambiental de Mato Grosso ao levar a cabo uma proposta que retira a proteção ambiental de uma área, promovendo novos desmatamentos, ao invés de garantir o cumprimento da lei que a protege.

Impactos de infraestrutura

Nos últimos anos, uma nova onda de construção de hidrelétricas (incluindo as PCHs e CGHs), promovidas por governos e empresas como fonte de energia limpa, se espalhou por todas as bacias hidrográficas de Mato Grosso. Respaldado pelo argumento de desenvolvimento local e regional sustentável, energia barata e segurança do sistema nacional de energia justificaram financiamentos públicos generosos, pautados em empréstimos subsidiados do BNDES e de outros bancos internacionais de desenvolvimento. Mato Grosso, por seu papel relevante na balança comercial brasileira na produção e escoamento de grãos, em exercido fortes pressões para acelerar a instalação de empreendimentos de infraestrutura no estado, notadamente os energéticos e de logística.

Uma análise feita em 2017 pelo Instituto Socioambiental mostra o quanto as pressões por empreendimentos de infraestrutura ameaçam diretamente as terras indígenas. O Formad entende que esta também é a situação dos territórios quilombolas, das unidades de conservação, dos assentamentos da reforma agrária e de outros espaços que se propõem a um outro modelo de desenvolvimento. O estudo revela que das dez terras indígenas mais ameaçadas por empreendimentos planejados, cinco localizam-se em Mato Grosso (todas na sub-bacia do Juruena, onde se concentram os maiores latifúndios do agronegócio brasileiro). Entre os dez territórios indígenas já afetados por empreendimentos de infraestrutura no Brasil, quatro estão em Mato Grosso e, dois deles no Juruena e dois no Teles Pires.

A análise das instituições que compõem o Formad é de que vários dos empreendimentos de hidrelétricas em fase de licenciamento ou mesmo em operação não estão implementando estratégias de mitigação ou de compensação dos impactos negativos. Para além disto há casos de violação de direitos humanos fundamentados por mais de uma dezena de Ações Civis Públicas movidas pelo Ministério Público. O Formad entende também que determinados grupos sociais são mais impactados que outros, em especial os grupos sociais vulnerabilizados pela falta de informação, pela fragilidade social e pela baixa capacidade de organização. Esses grupos são formados na sua maioria por pescadores, quilombolas, indígenas e assentados da reforma agrária. Nas cinco principais bacias de Mato Grosso (Alto Paraguai, Xingu, Alto Araguaia, Teles Pires e Juruena) existem cerca de 400 empreedimentos entre pequenos, médios e grandes planejados, em construção ou em operação. Além dos empreendimentos hidrelétricos existem os de logística que devem ser monitorados também, como Hidrovia Paraná-Paraguai (Bacia do Alto Paraguai) e a Ferrogrão, que liga a região centro norte do estado ao Porto de Miritituba no Pará (Bacia do Tapajós).

Falta de transparência pública

O acesso à informação pública de forma clara e organizada ainda é um imenso desafio em Mato Grosso, em especial às informações sobre a conduta do estado na área ambiental. Não se consegue hoje encontrar informações relativas aos estudos de impacto ambiental sobre todos os empreendimentos licenciados, bem como o teor das licenças ambientais emitidas e requeridas, quantidade de outorgas de uso da água por empreendedor ou por região, entre outros dados passíveis de análise, a menos que o pedido seja específico e, mesmo assim, por meio do serviço de Ouvidoria do estado. O Ministério Público Estadual e Federal também diagnosticaram a situação precária de transparência dos dados ambientais por parte da SEMA e existem hoje tanto recomendações específicas quanto uma ação civil pública do MPE em curso responsabilizando os gestores estaduais. Como ilustração, apontamos que desde 2014 Mato Grosso não publica os dados de repasse do ICMS Ecológico aos municípios, dificultando e em alguns casos inviabilização a implementação desta política pública, bem como o acompanhamento da sociedade civil acerca dos recursos oriundos da existência de áreas protegidas no estado, que deveriam ser aplicados em atividades fomentadoras da gestão ambiental dos municípios. Da mesma forma, hoje, os dados do CAR continuam sem disponibilização ao público.

Fragilidade do controle social

A participação ativa das diversas organizações sociais e ambientais em espaços de controle social foi incrementada nos últimos anos graças à insistência das mesmas em ocupar esses ambientes estratégicos. Entretanto, as dificuldades para influenciar positivamente as pautas desses fóruns e conselhos, transformando-os em espaços dinâmicos para discussão e aprimoramento da política ambiental no estado são inúmeras. Observamos que a atividade dos conselhos existentes qualifica minimamente o estado no exercício democrático, mas alertamos a necessidade de qualificação desta análise, pois na maioria das vezes as condições de participação dos representantes da sociedade civil são prejudicadas.

Os resultados das fragilidades do controle social atual têm impactos diretos na manutenção da cobertura florestal e dos direitos humanos, já que os interesses ambientais e sociais não se refletem nas políticas públicas. Com isso, faltam instrumentos básicos para garantir a boa gestão dos territórios e das florestas e garantir os direitos das populações vulneráveis.

Em um estado privilegiado pela existência de três biomas, não existe nenhum plano de bacia hidrográfica, que deveria orientar o poder público no planejamento do desenvolvimento regional. Outra situação vergonhosa é a inexistência de zoneamento socioeconômico e ecológico em Mato Grosso, ou seja, o principal instrumento de ordenamento territorial ainda não teve a devida atenção do governo para ser elaborado assegurando a proteção às áreas frágeis e garantindo os potenciais ecológicos para um desenvolvimento realmente sustentável.

Da mesma forma, passados seis anos da revisão do Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012), o estágio de implementação e desenvolvimento dos instrumentos criados para a regularização ambiental dos assentados, quilombolas e populações tradicionais pouco evoluiu. Sem avanços concretos nos próximos meses, populações que se enquadram nos critérios de elegibilidade do programa REM poderão ficar sem possibilidade de acesso pela ausência de instrumentos públicos de regularização ambiental.

Não devemos esquecer, ainda, que em 2016 o estado de Mato Grosso autorizou o uso do correntão como instrumento legal para a realização de desmatamentos, o que era considerado crime ambiental pelo seu alto potencial destrutivo. Entre os retrocessos ambientais iminentes no estado estão a proposta de afrouxamento do licenciamento ambiental para piscicultura, como a liberação de espécies exóticas, quando o próprio estado reconhece sua incapacidade de fiscalizar tais empreendimentos. Segundo um levantamento do Ministério Público estadual, entre as centenas de pisciculturas existentes em Mato Grosso, apenas 21 delas foram licenciadas em três anos.

Esperamos que as informações aqui expostas estimulem uma verdadeira discussão sobre a política socioambiental no estado de Mato Grosso, ressaltando a importância do governo estadual retirar toda e qualquer proposta de retrocesso socioambiental em tramitação. A continuação da atual política, além de gerar prejuízos sociais e ambientais, expõe negativamente a imagem do Estado frente à comunidade nacional e internacional, e compromete a captação de novos recursos junto aos financiadores.

Cuiabá, 21 de maio de 2018.

Coordenação Executiva do Formad:

Instituto Centro de Vida – ICV, Operação Amazônia Nativa – OPAN, Conselho Indigenista Missionário – CIMI-MT, Instituto Caracol, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE, Associação Cultural Fé e Vida.


[1] O estado de Mato Grosso é fundamental para conseguir atingir as metas nacionais de redução das emissões, já que é o segundo estado com maior emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) no Brasil, representando cerca de 10% das emissões brasileiras. Como na maior parte dos estados, as emissões de Mato Grosso vêm principalmente do setor de agricultura e mudanças do uso da terra, sendo que o desmatamento e as queimadas são os grandes responsáveis, com 67%, enquanto a agropecuária contribui com outros 28% (SEEG, 2017).

[2] http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/04/ministerio-resgata-31-trabalhadores-em-condicao-analoga-a-de-escravidao

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