Por: Dafne Spolti/OPAN
Estima-se que neste ano um número maior que a população de Cuiabá deverá desenvolver algum tipo de câncer no Brasil: 576 mil pessoas, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer José Gomes da Silva (INCA), órgão ligado ao Ministério da Saúde. Desde 2013, o câncer é a segunda causa de morte no país, depois das doenças cardiovasculares. Isso poderia ser diferente. Ao contrário do que se imagina, o câncer é provocado, na maioria das vezes, por agentes externos e, por isso, pode ser prevenido – assunto mais do que pertinente no estado que é campeão nacional no uso e contaminação por agrotóxicos, Mato Grosso.
Esta foi a discussão com maior destaque durante o lançamento do “Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, realizado em Cuiabá e Rondonópolis, no final do mês de julho.
Da esquerda para a direita: Karen Friedrich (Fiocruz), Wanderlei Pignati (ISC/UFMT), Maria Eduarda Melo (INCA), Franciléia Castro (FASE/Campanha), Lucinéia Freitas (MST/Campanha). Foto de Andrés Pasquis/GIAS.
A pesquisadora da Unidade Técnica de Alimentação, Nutrição e Câncer do INCA, Maria Eduarda Melo, apresentou o recente posicionamento do Instituto contra os agrotóxicos. Ela disse que essas substâncias possuem ação genotóxica e mutagênica e que algumas podem também enfraquecer o sistema imunológico, facilitando mais ainda as doenças cancerígenas. Diante da grande exposição aos agrotóxicos no Brasil, maior consumidor desses produtos, o risco de adoecer é alto. Ou por intoxicações agudas ou porque as toxinas vão se acumulando no organismo ao longo da vida pelo contato com o veneno. O uso intensivo dos pesticidas, herbicidas e inseticidas contamina diversos recursos vitais, o solo, a água e o ar, as frutas, os legumes e as verduras. Entram nesta conta também os cereais, leites e carnes, além de produtos industrializados feitos a partir de todas essas matérias-primas.
Maria Eduarda Melo contou, ainda, que a exposição aos agrotóxicos pode ocorrer mesmo dentro do útero materno e provocar graves consequências à saúde. “Uma pesquisa realizada durante 54 anos na Califórnia, nos Estados Unidos, comprovou que o risco de desenvolvimento de câncer de mama era quatro vezes maior nas pessoas cujas mães, durante a gravidez, apresentaram elevada concentração de DDT na corrente sanguínea”, contou.
Ela apresentou também resultados de uma pesquisa da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (International Agency for Research on Cancer – IARC), da Organização Mundial de Saúde. São comprovações dos riscos de alguns agrotóxicos específicos ao desenvolvimento de câncer em humanos. O glifosato, um dos mais utilizados no Brasil, e o 2,4-D (que compõe o agente laranja) são apontados como prováveis e possíveis carcinogênicos para humanos. O DDT foi avaliado como provável carcinogênico. Já o lindano, como extremamente carcinogênico para humanos. Maria Eduarda Melo recapitulou que o DDT, proibido no Brasil desde 1995, estava em 100% das amostras de leite materno em Lucas do Rio Verde no ano de 2010, assim como o inseticida lindano, proibido para fins agrícolas há 30 anos, encontrado em 6% delas, conforme pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
De acordo com a pesquisadora do INCA, além do risco provocado por cada substância, é preciso considerar que estamos expostos a muitos tipos de agrotóxicos e que é necessário calcular não apenas o efeito isolado disso, mas também a múltipla exposição a diversos agentes e suas possíveis implicações à saúde.
Durante toda a sua fala, a médica e pesquisadora deixou claro que, mesmo diante da contaminação por agrotóxicos e ainda mais por conta desse risco, é preciso comer frutas, verduras e legumes e manter a amamentação com leite materno, pois esses alimentos protegem o organismo do desenvolvimento de câncer.
Dossiê Abrasco e a luta contra os agrotóxicos
O “Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde” foi lançado em Cuiabá pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, junto ao Instituto de Saúde Coletiva da UFMT e à Escola de Saúde Pública, que sediou o evento. Estavam presentes representantes de movimentos sociais, da academia e do poder público.
A pesquisadora em toxicologia do Instituto Nacional de Qualidade em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Karen Friedrich, uma das organizadoras da publicação coproduzida entre a Fiocruz, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a livraria Expressão Popular, retoma o conteúdo do dossiê de 2012 e acrescenta dados recentes em torno da temática, apresentando o cenário da falta de regulamentação e apontando para as possibilidades da agroecologia. O livro aborda, também, questões sobre segurança alimentar e nutricional, sobre o meio ambiente – colocando em discussão o modelo de desenvolvimento agrário – e inclui saberes populares, cartas de agricultores familiares e populações que sofrem diretamente as consequências do uso de agrotóxicos.
Karen Friedrich foi bastante enfática ao apresentar alguns dados durante a apresentação do livro. De acordo com ela, a segunda parte o dossiê derruba o mito de que é preciso veneno para produzir alimento e matar a fome do mundo. “Esse modelo tem 40, 50 anos e não acabou com a fome do mundo. Na verdade, o que eles estão produzindo não se destina à alimentação humana”, afirmou. “Entre 2002 e 2011, a área agrícola para cana, milho e soja cresceu, enquanto a área plantada de alimentos como arroz, feijão e mandioca, diminuiu”, contou.
A toxicóloga apontou, também, que a partir de 2008 estagnou-se o avanço das terras para produção de monoculturas e que, apesar disso, o consumo de agrotóxicos não parou de crescer, o que comprova a perda de eficiência dos chamados defensivos agrícolas frente à resistência das pragas. Atualmente, a média de consumo de agrotóxicos no Brasil é de 7,3 litros por habitante ao ano. Em Mato Grosso, maior produtor de grãos do país, essa média é de 40 litros.
Karen Friedrich defendeu a agroecologia e a necessidade de mais investimentos para esse modelo de produção. “Existem alternativas. São reais possibilidades de produzir sem veneno”, garante ela.
A técnica da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), Franciléia Paula de Castro, representante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, também reforçou a importância do livro em valorizar a agroecologia. “A agroecologia não é só uma matriz que vai produzir alimento saudável para a população numa lógica de produção e consumo livre de agrotóxicos e de transgênicos, mas um modelo de sociedade que se preocupa com a vida no campo e na cidade”, afirmou. Para ela, o dossiê é um instrumento de luta para a sociedade e para as organizações em suas atuações diversas: saúde, educação, agricultura, meio ambiente.
Franciléia Paula de Castro contou aos presentes um pouco da história da Campanha Contra os Agrotóxicos, criada em 2011, e apresentou suas principais bandeiras: fim da pulverização aérea, banimento dos agrotóxicos proibidos em outros países, fim da isenção fiscal sobre a produção e a comercialização de agrotóxicos; territórios livres de agrotóxicos e transgênicos e água sem agrotóxicos.
Durante o evento, os palestrantes falaram por diversas vezes sobre a necessidade de criação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) e sobre a vigilância constante e eficiente de resíduos nos alimentos e na água, atualmente bastante frágil.
O “Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde” pode ser adquirido na livraria Expressão Popular ou baixado do site da Abrasco.
Franciléia Paula de Castro, representante da Campanha Contra os Agrotóxicos. Fotografia de Andrés Pasquis.