Dentro do território brasileiro há uma biorregião que abrange 12 estados, segundo maior bioma, com a maior riqueza de flora e fauna, mas é também o ambiente mais perturbado, seja pelo descaso do poder público, seja pela ocupação absolutamente irracional. Irracional porque, entre tantos atributos, o Cerrado abastece as principais bacias hidrográficas do Brasil, mas não tem merecido a devida atenção, notadamente quando nos deparamos com um cenário pouco animador em relação às águas.
Nunca se queimou tanto o Cerrado como nos últimos anos. Em 2022, já são mais de 20 mil pontos de incêndio registrados no bioma, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em uma escala de “limite máximo” de queimadas estabelecida pelo órgão para avaliar o nível de destruição ambiental, o Cerrado já ultrapassou esses indicadores, ou seja, o Cerrado está progressivamente sendo queimado. E ao parece, pouco importa.
No dia 11 de setembro de 2001, data que se tornou significativa para o planeta devido aos ataques às torres gêmeas nos Estados Unidos, foi instituído o Dia Nacional do Cerrado. Já se passaram quase 20 anos desde que o Decreto 9.660/2003 entrou em vigor, instituindo mais uma data comemorativa, porém é preciso refletir sobre o quanto o verbo comemorar pode ser utilizado em relação a esse maravilhoso bioma. É duro dizer, mas dos 198 milhões de hectares de cobertura florestal original restam apenas 88 milhões de hectares, ou seja, 55% da cobertura original já se perdeu. Juntamente com ela perdemos parte significativa da história devido às perdas de patrimônio arqueológico, desaparecimento de fauna e flora e grupos identitários expulsos ou mortos por grileiros e latifundiários.
Pode parecer coincidência, mas o Mapa da Violência no Campo produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) desmente essa hipótese apresentando como uma das causas a pressão fundiária. O cruzamento de dados de violência e degradação ambiental demonstra que a violência letal é maior nas áreas com maior desmatamento. Veja-se que debates em torno de aumento de exploração dos recursos naturais, que geraram Medidas Provisórias e Projetos de Lei, apenas fizeram aumentar a violência no campo. Essa discussão reforça a dupla questão: degradação ambiental anda de mãos dadas com perdas socioculturais; e, derivada da primeira, o fato de que a violência contra a natureza é também contra os grupos que se constroem em favor dela.
Pensemos que, ao longo de 13 mil anos, seres humanos habitam o Cerrado buscando formas de convívio com outras comunidades de vida. Os remanescentes são as centenas de grupos sociais, entre eles os povos indígenas, mas também os quilombolas, geraiseiros, quebradeiras de coco, vazanteiros e tantas outras comunidades tradicionais. Desta forma, o testemunho das dezenas de etnias indígenas, além de outras dezenas, centenas de identidades que habitam o cerrado é um fato importante e positivo.
Se ainda há alguma expressividade faunística, florística, hídrica, agrícola, isso se deve aos grupos de re-existência ou, para utilizar um termo atual, grupos resilientes. Nesse sentido, cabe a semelhança entre a biodiversidade e a sociodiversidade e essa relação não é um mero acaso, mas descreve o sentido mais forte da palavra socioambiental, ou seja, a capacidade de construir identidades em relação com a ecologia.
Se pudermos comemorar algo em relação ao Dia Nacional do Cerrado, diríamos que a continuidade de tradições socioculturais, que a produção agroecológica com ampla adesão de Povos e Comunidades Tradicionais representam a capacidade e inventividade popular. Se, por um lado, as mazelas ambientais que afligem o Cerrado são problemáticas e extremamente preocupantes, por outro, é preciso aprender e esperançar com as populações que aí habitam. Teimosamente, diríamos.
Em ano de escolhas para novas lideranças políticas, especialmente, em Mato Grosso que é agraciado pelo Cerrado, pensar em nomes que valorizam isto o tempo todo e não só em época de campanha, é de extrema importância. É preciso que cada vez mais a pauta socioambiental seja de todos, embora a carga recaia sempre sobre os mais pobres os prejuízos já são compartilhados por todos. Se tiver alguma dúvida, basta abrir sua janela e olhar para o céu cinzento e coberto por fumaça. O Cerrado queima!
*Herman Oliveira é ambientalista e secretário-executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), rede composta por mais de 30 entidades socioambientais.