Carta do V Encontro dos Povos do Cerrado
Brasília, 23 de novembro de 2006
Nós, membros dos Povos do Cerrado, Cuidadores do Território, da Cultura e da Biodiversidade, participantes do V Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, promovido pela Rede Cerrado, reunidos em Brasília-DF, de 23 a 26 de novembro de 2006, manifestamos nossa preocupação com o futuro do Cerrado e de seus povos.
Nosso Cerrado, savana de maior biodiversidade do mundo e fonte de água, alimento, habitação, energia, remédio, renda e beleza para milhões de brasileiros, corre perigo de se extinguir. Chamamos a atenção para a gravidade dos problemas socioambientais do bioma e a urgência de encontrar soluções efetivas, antes que o Cerrado se torne fonte apenas de saudades.
CONSIDERANDO a situação hoje:
Desmatamento galopante.Cerca de 60% dos 2 milhões de km2 do Cerrado já foram desmatados e 3% do que resta são derrubados a cada ano, situação mais grave que na Amazônia. A continuar neste ritmo, o Cerrado estará quase totalmente destruído em apenas 30 anos.
Queimadas descontroladas. Muitas áreas de Cerrado estão sendo queimadas todos os anos, o que prejudica a manutenção dos ecossistemas.
Produção de Carvão. São retirados mais de 1.000 caminhões de carvão vegetal nativo por dia, o carvão vai para a indústria siderúrgica para produção de ferro-gusa, matéria-prima do aço, que na sua maior parte é exportado.
Emissões invisíveis. Não se levam em conta as emissões de gases de efeito estufa decorrentes do desmatamento, das queimadas ou da pecuária no Cerrado.
Brasil seco. No Cerrado nascem rios formadores das principais bacias hidrográficas brasileiras: São Francisco, Tocantins/Amazonas e Paraná/Prata. O Cerrado funciona como a caixa-d’água do Brasil. A destruição do Cerrado e poluição de seus mananciais afetam todo o País.
Falta de energia. A ocupação desordenada do Cerrado prejudica o enchimento dos reservatórios e exige a construção de novas barragens, que acarretam o deslocamento de populações locais e
destruição de áreas naturais.
Desprezo. Não se reconhece o valor do Cerrado, e de seus povos, apesar de sua enorme importância e riqueza social.
Bioma excluído. A Constituição não considera o Cerrado como patrimônio nacional.
Falta de recursos. Os doadores internacionais destinam poucos recursos ao Cerrado e o governo brasileiro realiza despesas desproporcionais e insuficientes.
Biodiversidade desconhecida. Embora o Cerrado tenha biodiversidade tão rica quanto às florestas tropicais, o bioma é pouco conhecido.
Vida silvestre ameaçada. Os animais encurralados em fragmentos estão condenados à erosão genética ou extinção local, o que prejudica processos ecológicos como a polinização, a produção e dispersão de sementes.
Déficit de Áreas Protegidas. O Cerrado possui um nível de proteção abaixo da média brasileira. Menos de 3% do Cerrado está em unidades de conservação (UC).
Agronegócio insustentável. O agronegócio arrasa a terra e enriquece multinacionais.
População rural ameaçada de extinção. A população rural caiu pela metade nos últimos 40 anos e poderá praticamente acabar em uma geração.
Comunidades expulsas. As comunidades tradicionais que fazem uso sustentável do Cerrado estão sendo deslocadas para engrossar o desemprego urbano.
Povos indígenas sufocados. As terras indígenas, as maiores áreas de Cerrado em pé, estão espremidas pelo desmatamento, agrotóxicos e transgênicos.
Entraves institucionais. A fiscalização sanitária, ambiental e tributária prejudica os pequenos produtores familiares e favorece os grandes produtores insustentáveis.
REQUEREMOS ação urgente do poder público e da sociedade no sentido de:
1. Acelerar a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que eleva o Cerrado e Caatinga a Patrimônio Nacional.
2. Garantir a implementação do Programa Cerrado Sustentável, com ações e recursos suficientes definidos no Programa Plurianual (PPA) para 2008-2011.
3. Criar novas unidades de conservação, evitando erros do passado, que desrespeitaram populações tradicionais.
4. Restringir desmatamento e proibir uso de agrotóxicos e transgênicos em áreas prioritárias, e no entorno de UC, terras indígenas e quilombolas.
5. Estabelecer uma moratória da compra de produtos provenientes de novos desmatamentos após 2006. 6. Fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental, especialmente em relação à manutenção e recuperação de reservas legais e APPs.
7. Proteger áreas de recarga de aqüíferos.
8. Realizar e implementar Zoneamento Ecológico e Econômico.
9. Proibir o desmatamento de novas áreas para produção em larga escala (soja, eucalipto e biocombustíveis etc) e impedir que este tipo de produção cause prejuízos socioambientais.
10. Restringir o aumento da área de produção agropecuária, por meio de recuperação de áreas degradadas, com redução de impactos e estímulo agroecologia.
11. Apoiar comunidades e organizações da sociedade civil que fazem uso sustentável da biodiversidade, adequando as formas de repasse de recursos públicos.
12. Criar marcos regulatórios apropriados que promovam a produção, beneficiamento e comercialização de produtos de uso sustentável da biodiversidade..
13. Alcançar maior equilíbrio nos gastos governamentais por bioma.
14. Promover a transversalidade interna e externa no governo de questões relevantes para o Cerrado.
15. Promover a reforma agrária sustentável e combater sistematicamente o trabalho escravo e degradante.
16. Garantir e flexibilizar o acesso recursos financeiros para promoção da Educação Ambiental, e dar foco diferenciado para os processos educativos nas comunidades rurais.
17. Defender as culturas e os conhecimentos tradicionais dos povos do Cerrado.
18. Considerar a sobrevivência do Cerrado e de seus povos uma questão de segurança da nação.
Rede Cerrado de Organizações Não-Governamental