Repórter Brasil – Troncos fincados no chão sustentavam a lona preta dos barracões que abrigavam 51 trabalhadores em fazenda no interior do Mato Grosso. As pessoas que viviam no local estavam expostas ao frio, à chuva, a picadas de insetos e a qualquer outra doença que quisesse se aproximar. O “alojamento” também não oferecia água potável, sanitários, armários ou camas. Depois de horas de trabalho no roço e limpeza de pastos, eles descansavam seus corpos em redes amarradas às toras de sustentação do barraco ou mesmo no tecido estendido pelo chão de terra batida. A água que matava a sede, cozinhava e banhava os trabalhadores era a mesma que servia o gado.
Foi essa a situação encontrada pela fiscalização ao chegar na Fazenda Rio Mutuca, localizada nas proximidades de Juara (MT), entre os dias 19 e 20 de junho. A ação do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 51 trabalhadores de trabalho degradante.
Todos os resgatados foram conduzidos até o município de Juruena (MT), onde a empreitada concluída foi devidamente registrada em carteira e as guias para o recebimento do seguro-desemprego, preenchidas. As verbas rescisórias somaram R$ 251 mil – R$ 43,5 mil desse total relativos a danos morais individuais. Foram lavrados 16 autos de infração, cujos valores podem chegar a R$ 100 mil. O proprietário da fazenda, Luiz Alcir de Moraes, já com mais de 70 anos, delegava a administração do latifúndio de 12 mil hectares ao filho Luiz André, que esteve presente durante a fiscalização. Contudo, foi Luiz Alcir que se recusou a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), o que abre espaço para uma ação civil pública por danos coletivos.
“Essas pessoas estavam submetidas a situações desumanas de trabalho e habitação. Era insuportável ficar embaixo daqueles barracos. Fazia um calor imenso. Além disso, eles bebiam uma água turva, completamente imprópria para consumo. Uma situação chocante”, relembra o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) de Campo Grande (MS), Heiler Natali.
Segundo ele, o dono da fazenda achou o valor proposto no TAC muito elevado. “Não houve consenso com relação aos danos morais coletivos. Então, será ajuizada uma ação civil pública num valor superior a R$ 1 milhão. E em juízo, a gente vai ver no que vai dar”, alerta o procurador. “Pelo filho, ele firmava o TAC, mas o pai não compreendeu a necessidade de reparação da sociedade pelo dano sofrido tendo em seu convívio pessoas que submetem seus iguais a condições análogas ao de escravo em pleno século XXI”.
Os valores de uma reparação por danos morais, individual ou coletivo, são fixados com base em parâmetros estabelecidos pelos tribunais. Os principais critérios são a gravidade e extensão do dano, potencial ofensivo do dano e o porte econômico do ofensor. “Esses são os requisitos que gravitam na mente de qualquer um que vai fixar indenizações por danos morais. Com base nesses fatores, nas condições dos trabalhadores, eu arbitrei esses valores. Esse é um fazendeiro que tem até avião. Tem sete mil cabeças de gado, outras duas fazendas. É uma família que tem um patrimônio que supera muito os R$ 100 milhões. É inadmissível, com todo esse patrimônio, tratar seus funcionários de tal forma”, explica o procurador. A ação vai ser ajuizada nas próximas semanas pelo Ofício do MPT de Alta Floresta (MT).
Apesar das péssimas condições de moradia e alimentação, os trabalhadores, segundo o auditor fiscal Gilberto Braga, não eram proibidos de deixar a propriedade e reclamavam mesmo do pagamento. “O fazendeiro pagava com cheque e o único local que trocava esses cheques era um mercado ali perto. Mas o proprietário só trocava se eles fizessem alguma compra”, conta o auditor. Além disso, os salários não eram pagos regularmente: houve ocasiões em que os trabalhadores levaram mais de 60 dias para receber.
Equipamentos de proteção individual (EPIs) contra acidentes de trabalho também não eram distribuídos pelo dono da fazenda. As botas, compradas pelos próprios funcionários e por valores superiores aos do mercado local, eram a única proteção utilizada, inclusive por aqueles que operavam motosserras. “Essas pessoas que estavam lá trabalhando tinham seus direitos e um desses direitos era trabalhar em segurança. Nenhuma dessas pessoas trabalhava em segurança”, afirma Heiler Natali.
Houve relatos de acidentes de trabalho e omissão de socorro imediato. “Teve um caso de um homem que andou um dia inteiro sangrando até conseguir alguma ajuda”, conta o procurador. Outro caso foi de um trabalhador que se acidentou e só foi levado até a balsa próxima da fazenda no dia seguinte, “pois ninguém se dispôs a ajudar na hora do acidente”. “Depois disso, os trabalhadores contaram que tinham que pedir carona até o hospital”, complementa Gilberto Braga, com base nos relatos dos empregados.
Os 51 trabalhadores já voltaram para os municípios de Juara, Juína e Juruena, de onde vieram, na região noroeste do Mato Grosso. A operação foi montada a partir de denúncias encaminhadas ao Ofício do MPT em Alta Floresta.