Miguel Aparicio Suárez* – O controvertido processo de desconfiguração do Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso, transformado num Zoneamento ruralista que desconheceu 20 anos de estudos técnicos e um amplo processo de debate da sociedade mato-grossense, atingiu nas últimas semanas uma gravidade maior. Formatado de maneira unilateral para dar suporte aos interesses do agronegócio, eliminou pontos básicos como a manutenção de áreas de elevado potencial florestal, a proteção dos recursos hídricos (especialmente, na região das nascentes do Xingu e do Alto Paraguai), a possibilidade de criação de unidades de conservação, o planejamento de áreas de promoção da agricultura familiar e, de modo geral, os direitos das populações indígenas, extrativistas e quilombolas. No dia 27 de outubro de 2010, a Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso aprovava o Projeto de Lei de Zoneamento (PL 273/2008), com 19 votos favoráveis e apenas um contrário (Dep. Ságuas Moraes – PT). Na sessão do 1º de dezembro passado, os deputados aprovaram em redação final a Lei de Zoneamento, nos moldes do Substitutivo integral 03 do deputado Dilceu Dal Bosco e das lideranças partidárias. Neste momento, a peça se encontra sob processo de sanção do Executivo. O Anexo da Lei aprovada no dia 1º de dezembro – ou seja, o texto das Diretrizes para as Categorias, Subcategorias, Zonas e Subzonas em que o ZSEE é organizado – apresenta mais um elemento que desrespeita a legislação federal e os direitos indígenas reconhecidos constitucionalmente: treze terras indígenas foram eliminadas do Zoneamento do Estado de Mato Grosso. Confiram: TI Baía dos Guató (etnia Guató) TI Batelão (etnia Kaiapó) TI Batuvi (etnia Waurá) TI Cacique Fontoura (etnia Karaja) TI Estação Pareci (etnia Paresi) TI Kaiabi (etnia Kaiabi) TI Kawahiva do Rio Pardo (índios isolados) TI Manoki (etnia Manoki) TI Pequizal do Naruvotu (etnia Naruvotu) TI Piripikura (índios isolados) TI Ponte de Pedra (etnia Paresi) TI Portal do Encantado (etnia Chiquitano) TI Uirapuru (etnia Paresi) No critério dos deputados estaduais, a Categoria de Áreas Protegidas se estrutura em duas subcategorias, ‘Áreas Protegidas criadas’ e ‘Áreas Protegidas Propostas’ incluindo Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Remanescentes de Quilombo. Contudo, no texto da versão final aprovada foram eliminadas aquelas terras indígenas que se encontram em processo de identificação, delimitação e demarcação, contrariando a legislação federal que, em todas estas fases, reconhece formalmente o direito dos povos indígenas sobre seus territórios. No Zoneamento ruralista, nestas terras indígenas se aplicam as diretrizes próprias dos seus entornos, majoritariamente considerados como Áreas de estrutura produtiva consolidada ou a consolidar. Cada Substitutivo ao Projeto de Lei original tem progredido num modelo de planejamento territorial forjado para priorizar de maneira exclusiva os interesses do agronegócio, chegando ao seu auge no texto final, modelado segundo a pauta do Substitutivo 3. Além do desrespeito aos diretos territoriais indígenas, devidamente reconhecidos pela União, outras componentes do novo Zoneamento confirmam a unilateralidade da perspectiva ruralista: • Aumento de 72,88% para as Áreas com estrutura produtiva consolidada ou a consolidar (aumento de 72.700 hectares em relação a proposta anterior, totalizando assim mais de 170.000 hectares para o agronegócio); • Redução de 41,32% das áreas para conservação ou recuperação dos recursos hídricos (perda de 61.000 hectares para a proteção das águas do Estado); • Redução de 40,24% das áreas com elevado potencial florestal (perda de 62.000 hectares para a proteção das florestas) • Redução de 82,40% das unidades de conservação (perda de 52.000 hectares de áreas protegidas no território do Estado). A sociedade civil mato-grossense e articulação dos movimentos sociais e ambientalistas do Estado têm manifestado suas críticas ao resultado final do processo de Zoneamento, que finalizou numa proposta ausente de legitimidade, representatividade, transparência e rigor técnico-científico. Além do repúdio veemente da sociedade civil, o Ministério Público tem manifestado sérias críticas ao processo. Na mesma forma, o Ministério do Meio Ambiente divulgou recentemente uma Nota, através da Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável, com uma posição análoga à reivindicada pelos movimentos sociais: “A eventual sanção da lei aprovada pela Assembléia Legislativa de Mato grosso será prejudicial para o Estado e para o País. Além do comprometimento da conservação e do uso sustentável dos recursos naturais, o que está em jogo é a imagem de Mato Grosso no cenário nacional e internacional, com impactos, inclusive, no acesso da produção mato-grossense ao mercado exterior […]. A lei aprovada, na forma do substitutivo integral nº 3, representa, na prática, um outro zoneamento, bem diferente daquele encaminhado pelo Executivo. E mais grave: as alterações no projeto original foram realizadas num espaço de tempo de três meses. Com isso, toda a fundamentação conceitual e metodológica do ZEE voltada para assegurar a manutenção da integridade e funcionamento dos ecossistemas foi desconsiderada. Tudo indica que prevaleceram critérios associados às reivindicações políticas recolhidas nas audiências públicas, assim mesmo, acolhendo-se apenas aquelas apresentadas por determinados grupos econômicos, em detrimento dos segmentos representativos da maioria da sociedade […]. Diante desse quadro, caminhamos para um impasse. Com isso, o zoneamento do estado perderá sua legitimidade técnica, com as previsíveis conseqüências assim levantadas. A única via possível de resgate do ZEE é o veto do governador à lei aprovada pela Assembléia. Mesmo assim, o Legislativo poderá derrubar o veto”. Nas últimas semanas, O Grupo de Trabalho Mobilização Social, articulação de 35 entidades da sociedade civil do Estado, reiterou suas críticas ao Substitutivo ruralista, solicitou o veto do governador e reafirmou seu compromisso com a construção de um Zoneamento a favor de Mato Grosso, das suas populações e dos seus ecossistemas. Na seqüência, o Manifesto divulgado pelo GT/MS, apresentado ao Governador Silval Barbosa no dia 16 de dezembro de 2010. ******** POR UM ZSEE LEGÍTIMO E REPRESENTATIVO DOS DIVERSOS SEGMENTOS DA SOCIEDADE MATOGROSSENSE Cuiabá, 16 de dezembro de 2010 Desprezando os 20 anos de estudos técnicos, as 15 audiências públicas e as inúmeras expressões do controle social participativo pela sociedade civil, a Assembléia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), entre as estratégias coloniais de dominação e manutenção do status quo, aprovou o Substitutivo 3 do Zoneamento Socioeconômico Ecológico (ZSEE) em 27 de outubro de 2010, apelidado como “substitutivo ruralista” pela sociedade civil. Agora ele deverá ser apreciado pelo Governador do Estado, e nas últimas instâncias, pela Comissão Coordenadora do Zoneamento Nacional (CCZEE) e pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA). As entidades que assinam este manifesto novamente clamam pelo SENSATO VETO DO GOVERNADORÀ LEI APROVADA, pelos seguintes motivos: – A versão da lei encaminhada ao Governador pela Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso (AL) apresenta inconsistências técnicas, além de desperdiçar uma grande soma de recursos já utilizados nos estudos, e gerará conflitos socioambientais na sociedade mato-grossense, de várias ordens. Todo zoneamento deve ser avaliado pela Coordenação Nacional do ZEE, ligada à SDR/MMA que, através de Nota Informativa e em reunião com o Governador Silval Barbosa alerta que “as alterações do projeto original foram realizadas num espaço de tempo de três meses. Com isso, toda a fundamentação conceitual e metodológica do ZEE, voltada para assegurar a manutenção da integridade e funcionamento dos ecossistemas, foi desconsiderada”. A nota conclui: “a única via possível de resgate do ZEE é o veto do Governador à lei aprovada pela Assembléia”. O Ministério Público Estadual [MPE] também entregou, em março de 2010, ao então Governador Blairo Maggi, um parecer técnico demonstrando sua preocupação com inconsistências que ameaçam a aprovação e que, se levadas adiante, serão motivo de intervenção da Instituição. – O ZSEE aprovado pela AL é um contra-senso, pois além dos dilemas socioambientais, exclusão social e manutenção da desigualdade no campo, representa um “tiro no pé” do próprio setor de base primária responsável por liderar a desconfiguração da proposta inicial. O mercado internacional de commodities agrícolas, por pressão da sociedade, está atento a uma produção que segue, minimamente, as leis. Um Estado sem um zoneamento reconhecido,fruto de um processo sem transparência, enfrentará, seguramente, restrições à venda da sua produção. – O processo de construção e tramitação do terceiro substitutivo, desde a segunda votação na plenária, atropela normas regimentais na questão da transparência e lisura. O deputado Dilceu Dal Bosco, presidente da Comissão Especial do Zoneamento e as Lideranças Partidárias, desconsiderando a diversidade das contribuições da sociedade mato-grossense que resultaram no primeiro substitutivo, elaboraram um documento às pressas que contempla o setor do agronegócio comprometido com seus próprios interesses. Outro indício de falta de transparência é atribuído ao fato de que o mesmo deputado Dilceu Dal Bosco foi indicado, uma semana antes da segunda votação, como o relator da própria proposta, o que evidencia uma demonstração de conflito de interesse na aprovação dentro da ALMT. Os movimentos sociais formados pelas instituições que assinam este documento vêm se posicionando ao longo deste ano para evitar o retrocesso que marcou o processo de aprovação da lei por parte da Assembléia. Além do nosso posicionamento que marca um enfrentamento a certos setores econômicos, estamos acima de tudo preocupados com o rumo não transparente, retrógado e irresponsável que configurou a aprovação do ZSEE pela Assembléia e seus reflexos para o desenvolvimento do Estado. Entre as principais distorções encontradas no mapa do ZSEE feitas pela ALMT ressaltamos: (1) a exclusão de terras indígenas, (2) a redução de áreas propostas para criação de unidades de conservação, (3) a redução de áreas para manejo florestal sustentável, e (4) a total desconfiguração de áreas necessárias à conservação de recursos hídricos. Estes aspectos, aliados à descaracterização de áreas anteriormente destinadas a políticas específicas para a agricultura familiar, tiram a total credibilidade do ZSSE de Mato Grosso, como instrumento de gestão territorial do Estado, frente à comunidade nacional e internacional. Neste sentido, e pelos motivos expostos acima, repudiamos a aprovação deste substitutivo do Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso e exigimos: O veto do Governador à lei aprovada pela Assembléia Legislativa! A articulação da base de sustentação do governo na ALMT para a manutenção do veto! Que o poder público estadual (executivo e legislativo) retome o processo de consolidação do ZSEE-MT, a partir da base técnica já disponível sobre o mesmo, somadas às contribuições das audiências públicas já realizadas e sistematizado no substitutivo 1. Enfim, pela condução de um processo democrático e ético do ZSEE debatido e pactuado com a sociedade mato-grossense! Cuiabá: 16 de dezembro de 2010. GRUPO DE TRABALHO DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL – GTMS E demais entidades e movimentos das redes socioambientais 1. Associação Brasileira de Homeopatia Popular, ABHP 2. Associação dos Docentes da Universidade de Estado de Mato Grosso, ADUNEMAT 3. Associação Nossa Senhora da Assunção, ANSA 4. Associação Rondopolitana de Proteção Ambiental, ARPA 5. Centro Burnier Fé e Justiça- CBFJ 6. Coletivo Jovem de Meio Ambiente, CJMT 7. Comissão Interinstitucional de Educação Ambiental, CIEA-MT 8. Conselho Indigenista Missionário, CIMI 9. Entidade Nacional dos Estudantes de Biologia, ENEBio 10. FASE Mato Grosso – Educação e Solidariedade, FASE 11. Fórum de Lutas das Entidades de Cáceres, FLEC 12. Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento, FORMAD 13. Grupo Cultural e Ambiental RAÍZES 14. Grupo de Estudos em Educação e Gestão Ambiental – UNEMAT 15. Grupo de Pesquisa de Movimentos Sociais e Educação, GPMSE-UFMT 16. Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, GPEA-UFMT 17. Instituto Caracol, iC 18. Instituto Centro da Vida, ICV 19. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, IPAM 20. Instituto Gaia 21. Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual, INBRAPI 22. Instituto Indígena Maiwu 23. Instituto Mato-grossense de Direito e Educação Ambiental, IMADEA 24. Instituto Socioambiental, ISA 25. Instituto Teribre, povo indígena Karajá 26. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST 27. Operação Amazônia Nativa, OPAN 28. Organização de Mulheres Indígenas de Mato Grosso, TAKINÁ 29. Rede Axe Dudu 30. Rede Mato-Grossense de Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais, REMAR COMTRA 31. Rede Mato-Grossense de Educação Ambiental, REMTEA 32. Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de Mato Grosso, SINTEP 33. Sociedade Fé e Vida 34. Instituto de Ecologia e Populações Tradicionais do Pantanal – ECOPANTANAL 35-Cooperativa dos Pescadores e artesãos de Pai André e Bonsucesso – COORIMBATÁ *Miguel Aparicio é gestor do Programa de Conservação de Terras Indígenas da OPAN e membro da Coordenação do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento/ FORMAD. Artigo publicado originalmente no site O ECO