Em dezembro de 2010, quando autoridades de Mato Grosso e a imprensa estadual se reuniram em roupas de gala para a diplomação dos políticos escolhidos na última eleição, um pequeno grupo de manifestantes causava mal estar entre os presentes. Fantasiados de índios, ribeirinhos e agricultores, eles realizavam o “enterro do zoneamento”. Eram integrantes de ONGs e movimentos sociais que organizaram o ato simbólico para pedir o veto do governador Silval Barbosa (PMDB) ao projeto de lei do Zoneamento Socioeconômico Ecológico (ZSEE). O local da diplomação era a casa de eventos da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato). Apesar dos gritos terem ecoado pelos salões da diplomação e o burburinho do protesto ter tomado a cidade por alguns dias, o ato em si teve pouca repercussão na mídia local e na agenda do governador. Alguns dias depois, na virada do ano, ele sancionaria a lei. “Não era de se espantar. Eles não foram democráticos em nenhum momento das audiências públicas, por que haveriam de ser agora, logo na reta final?”, lamenta Amanda Fernandes, da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente (Rejuma), e que participou de todo processo de consultas públicas e ajudou na organização do ato contra o ZSEE. O capítulo do ZSEE de Mato Grosso é um evento menor no imbróglio do Código Florestal. Mas, se analisado de perto, pode trazer um panorama cruel sobre como alguns governos estaduais vão utilizar essa ferramenta (prevista no Código Florestal) para afrouxar ainda mais as normas ambientais. Basicamente, o zoneamento é uma ferramenta de ordenamento territorial que dá diretrizes para o desenvolvimento. Ou seja: aponta as áreas para conservação e produção baseado em estudos técnicos de um quadro multidisciplinar. O Código Florestal abre brechas para que, através do zoneamento, os estados possam diminuir as áreas de Reserva Legal de 80% para 50% em propriedade que ficam nas chamadas “Áreas Consolidadas”, dentro da Amazônia Legal. A rigor, existem duas versões do ZSEE de Mato Grosso, uma de caráter técnico, feita por peritos do governo, e outras três versões (ou substitutivos) feitas por deputados estaduais. “O texto que foi sancionado pelo governador tem discrepâncias muito grandes com o que o corpo técnico do governo propunha. Só para ter uma ideia, a área de agricultura consolidada cresceu 83%, enquanto que a de manejo de recursos hídricos caiu 72%”, diz João Andrade, economista do Instituto Centro Vida (ICV). “Este é claramente um zoneamento que visa atender apenas a um setor da economia”. Ambientalistas e integrantes dos movimentos sociais afirmam que o resultado do processo de audiências públicas não foi sequer respeitado na hora de montar os substitutivos. “Todas as sessões foram direcionadas, com uma clara demonstração de forças da bancada ruralista. Mas, mesmo assim, na hora de desenhar o mapa eles fizeram do jeito que acharam melhor, sem nem ao menos respeitar o processo de audiência dirigido por eles”, diz Amanda Fernandes. A organização de Andrade, o ICV, realizou uma série de vídeos explicando o processo e a importância do ZSEE para a sociedade na época da aprovação do projeto; os vídeos podem ser acessados no Youtube. “A sociedade civil de Mato Grosso se organizou, participou de audiências, realizou manifestações, fez vídeos, tuitaço, mas mesmo assim foi atropelada pelo processo”, lamenta o economista. Tanta controvérsia fez com que o Ministério Público entrasse com uma ação civil pública contra o ZSEE sancionado pelo governador. No texto da ação o promotor Domingos Savio descreve o processo como marcado por “equívocos gigantescos, sofismas e engodos”. Além disso, o documento diz que o projeto apresentado pelas lideranças partidárias foi avaliado por uma equipe técnica que concluiu estar “em desacordo com a realidade socioeconômica e ecológica do Estado de Mato Grosso, além de contrariar a legislação federal.” Segundo André Lima, advogado consultor da SOS Mata Atlântica em Brasília, o elo entre Código Florestal e os Zoneamentos Estaduais pode ser ainda mais perverso caso os senadores não incluam uma data limite para perdoar quem desmatou: “O texto deixa uma janela enorme para flexibilização da reserva legal na Amazônia para novos desmatamentos ao não indicar uma data-limite como linha de corte para aplicação do artigo 13. Sem ela novos desmatamentos serão estimulados em toda Amazônia”, diz Lima. De agosto de 2010 até abril de 2011, período de aprovação do zoneamento, o desmatamento em Mato Grosso cresceu 96% em relação ao ano anterior. Na época da divulgação dos dados o superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em Mato Grosso, Ramiro Hofmeister de Almeida Martins-Costa, concedeu entrevista a veículos de comunicação dizendo que isso era um reflexo da lei do zoneamento. Rui Prado, presidente da Famato, contesta os dados e diz que o zoneamento não estimula o desmatamento. “Não existe anistia. Quem desmatou será obrigado a recuperar as áreas através de um PRAD [Plano de Recuperação de Áreas]. Não é com multas que se resolve a questão ambiental e sim com recuperação”, diz. Ele afirma que o novo código em conjunto com o zoneamento vai trazer mais segurança jurídica para os produtores e para a conservação. “Estamos realizando um programa de regularização ambiental em Mato Grosso, a partir daí será muito mais fácil acompanhar a questão da conservação, baseado numa lei moderna e que atenda aos anseios da sociedade”. O economista João Andrade contesta. Segundo ele, ter uma lei frouxa é uma forma de “legalizar” o desmatamento. “Alguns estados tem interesses bem específicos, como Mato Grosso, que tem compromisso com o agronegócio. Descentralizar a questão ambiental que é de interesse nacional e passar a bola para governos estaduais é uma grande irresponsabilidade”, afirma. Por Thiago Foresti, de Cuiabá FONTE: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/licenca-para-desmatar/