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O caminho de volta para a selva

Keka Werneck/ADUFMAT – A professora da UFMT Maria Fátima Roberto Machado lança no dia 25 de junho, às 19h30, (local), o livro “Museu Rondon – Antropologia e Indigenismo na Universidade da Selva”, pela Editora Entrelinhas. No livro, a autora, que é doutora em antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ e, desde a década de 80, pesquisa sociedades indígenas, propõe uma reflexão sobre os povos de Mato Grosso dentro da perspectiva histórica do Museu Rondon, criado em 1972, e da UFMT como instituição fundada com uma vocação: ser uma universidade de vanguarda, a Uniselva. Na visão dela, uma vocação que vem se perdendo no caminho, o que “empobrece a instituição e a sociedade na qual ela se insere”. Nesta entrevista, falamos sobre um pouco do livro em si, das contradições que surgem na relação entre índios e não-índios e o preconceito que faz com que descendentes das aldeias neguem a própria origem, pressionados pelo preconceito étnico. Esse fenômeno, conforme a professora, compromete a identidade de todos nós e abre brechas para atrocidades, como o massacre dos Cinta-larga.
 
 
Qual o papel do Museu Rondon?
Ele é um museu de divulgação de cultura material indígena. As pessoas não sabem, mas a gente tem um acervo muito importante dos povos de Mato Grosso, incluindo inclusive peças de períodos pré-contato.
 

São quanto povos indígenas em Mato Grosso?
39.
 

E já foram quantos?

Não dá nem para dizer. Para você ter uma idéia, só os Bororo, conforme estimativas de população, eram no início do século 50 mil índios. Hoje não passam de 1,2 mil.
 

Um extermínio muito grande…
Muito grande!
 

Esse extermínio se deu por armas, ou seja, em situações de conflito físico ou também por doenças?

Os dois motivos mataram os índios brasileiros de uma maneira absurda. Muitas epidemias. Eu estudei particularmente uma epidemia que atingiu os Pareci. Meus informantes me diziam que morriam mais de 50 índios por dia.
 

Para os índios então de toda forma o contato com o chamado homem branco foi negativo?
Absolutamente negativo. O que é uma pena, porque eles têm um conhecimento tão profundo da natureza, uma riqueza cultural tão grande, e as pessoas viram as costas. Não vêem possibilidade de uma convivência com o saber e o conhecimento deles. E entre as grandes razões que inviabilizam essa convivência pacífica uma delas é a cobiça da terra e dos recursos naturais. Hoje em dia você deve acompanhar bem essa questão das hidrelétricas, há um saque de recursos naturais.
 

No caso das usinas, os índios são um incômodo para essas grandes empreiteiras, porque sempre se posicionam, indicando os impactos imediatos, como mortandade de peixes, por exemplo.
Exatamente e você nota, você que é jornalista, uma ausência dos índios nos debates. Se você fizer uma pesquisa nos jornais, quantas vezes a imprensa se abriu para a manifestação dos índios? Então os índios não têm espaço de manifestação sobre o que está acontecendo, a não ser que façam protesto.
 

Os índios ainda são colocados como pessoas bizarras?
Muito, muito, como povos exóticos ou selvagens. Uma coisa criminosa. Porque alguns deles têm uma dinâmica tão sofisticada do ponto de vista da organização social, do conhecimento do meio ambiente, da natureza.
 

Eles fazem reflexões filosóficas também sobre Deus…Divindades…
É, as relações com os mortos… Os Bororo têm respeito profundo pelos seus mortos, fazem rituais, que atraem etnólogos do Brasil e do mundo inteiro para estudá-los. E vizinhos deles quase sempre não demonstram interesse em conhecê-los.
 

Pelos estudos que a senhora já fez, a senhora levantaria algumas hipóteses sobre os motivos do preconceito dos não-indígenas com os indígenas? Preconceito que ainda prevalece, apesar de muitos de nós ter características indígenas.
Acho muito importante você dizer isso. Olha os políticos tradicionais de Mato Grosso, podemos ver esses traços tão fortes de uma descendência indígena e parece que eles sentem tanta vergonha disso.
 

Tentam anular essa identidade?
É, enquanto deveriam se sentir engrandecidos, achar isso uma coisa importante, porque eu costumo dizer para os meus alunos que você pode perder uma perna, um braço, um fígado, um olho e você continua vivendo, mas, se você perder a identidade, você pode morrer, porque já não sabe quem você é.
 

Socialmente isso é um problema sério.
Socialmente, psicologicamente, emocionalmente. Essa negação provoca – eu vejo – certos conflitos nessa população tradicional de Mato Grosso, que é evidentemente de descendência indígena e nega isso, vejo o quanto isso faz mal para ela mesma.
 

Essa negação vem do que?
Olha, existe esse preconceito de dizer que os índios são selvagens, então ninguém quer ser selvagem, ninguém quer assumir um estigma.
 

Essa negação é muito semelhante à que acontece com parte dos afro-descendentes?
Sim, porque são atribuídas a eles características negativas, que fazem com que parte da sociedade que tem esse biótipo sinta isso como um estigma.
 

Mas são pejorativos…
Mas preferem lutar para não ter essa marca do que para mudar isso.
 

Quem visita o Museu visualiza essas reflexões de alguma forma? Qual a riqueza dele para a sociedade?
É importante dizer que o Museu não é só uma sala de exposição de cultura material. Ele é, desde o começo, um centro de produção de conhecimento, então a gente produz pesquisas. Temos uma atenção muito especial com as crianças, principalmente do ensino básico, acreditando que a gente tem que mudar essa mentalidade desde cedo. E a gente tem uma colaboração bastante antiga também com o Ministério da Saúde, da Educação, Cultura. Eu participo de um Grupo de Trabalho há vários anos no Ministério da Cultura, para a criação de políticas públicas voltadas às culturas e sociedades indígenas, dentro dessa idéia de gerar na sociedade brasileira mais respeito a esses povos, e um respeito vindo de um conhecimento maior, porque o desrespeito é fruto da ignorância das pessoas.
 

O seu livro conta a história do Museu?
Do Museu, dentro da história da Universidade da Selva. Hoje em dia quase ninguém se lembra que a UFMT se propôs a ser a Universidade da Selva.
 

Será que a UFMT também nega essa identidade indígena?
Hoje eu penso que sim, uma negação comparável à das pessoas que têm descendência indígena.
 

É que as instituições são reflexos da sociedade na qual elas estão inseridas.
É. Mas eu diria que a UFMT está negando uma história muito interessante, porque havia uma preocupação em propor aqui uma universidade de vanguarda. Havia uma contradição entre um grupo de pessoas que era bastante de vanguarda cultural e política e um grupo mais conservador, que depois permaneceu nas estruturas da Universidade e acabou sendo responsável por esse conservadorismo que transforma a UFMT em uma universidade absolutamente igual a qualquer outra.
 

E ao negar essa identidade própria e tentar se equiparar ao modelo clássico de universidade…
…Se empobreceu. E eu escrevi esse livro para colocar isso em discussão. É uma proposta muito rica (Uniselva) e foi se perdendo ao longo do tempo e a gente precisa também recuperar um pouco essa identidade, sentir um pouco de orgulho de ter aqui uma proposta de vanguarda, que se perdeu pelo caminho, mas isso não deslegitima toda a intenção.
 

Tem alguma parte do livro que a senhora gostaria de destacar?
Destacaria o Simpósio Cinta-larga, articulado para tratar do destino dos sobreviventes do massacre.
 

Nesse massacre morreram quanto?
Não temos exatamente a quantidade, mas é importante centrarmos atenção na violência do massacre. Há descrições de atos absurdos.
 

Quando ocorreu?
Por volta de 1963. Inclusive tinha notícias nos jornais e isso é também um dado interessante, porque a imprensa internacional acompanhava bastante o crescimento da UFMT, as propostas da UFMT. Tem um capítulo que eu falo somente sobre a importância da imprensa na história da UFMT. E há inclusive depoimentos terríveis, dando conta que estendiam os índios de ponta-cabeça nas árvores e cortavam pela metade.
 

Professora, que raiva é essa?
Os índios estavam e estão em região de mineração, de grandes fontes de minério. Então, é terra cobiçada. E os índios não vão sair da terra, evidentemente. Para resolver o problema, eles matavam os índios. Inclusive eu lembro – e falo isso através de entrevista com o professor que fundou o Museu Rondon – que Orlando Vilas Boas teria dito ao professor Gabriel Novis Neves, então reitor, que se a UFMT conseguisse ao menos acabar com o extermínio de índios em Mato Grosso já teria cumprido importante papel em sua história.
 

E ela conseguiu cumprir com esse papel?
De alguma forma sim, embora as muitas formas de violência, de conflitos, também graves, continuem.
 

Quais os principais dramas dos povos indígenas de Mato Grosso atualmente?
Os povos indígenas têm muitos problemas, entre eles  o alcoolismo, as drogas, a subnutrição e outras doenças.
 

Isso por conta da desconstrução da identidade indígena?
Isso é o que nós fazemos para eles, porque tudo que chega da nossa sociedade para eles é sempre ruim, sempre o resto, o lixo, a droga, a doença, nós nunca pensamos em levar coisas boas. Agora que se começa a ter experiências em educação, saúde, ainda que tenham um significado ainda muito incipiente.
 

Todos os povos do mundo lidaram assim com seus índios?

De modo geral sim. Sempre quando eles estiveram em lugares onde havia a cobiça pelos recursos naturais, como no Canadá, nos Estados Unidos.
 

Na América Latina de modo geral, os traços indígenas são muito mais intensos inclusive do que aqui no Brasil, não é? Bolívia, Peru, Chile…
Lá os índios são a maioria da população.
 

Lá também há registros de massacres dessa natureza?
Muitos, grandes problemas, os índios do Peru estão passando, em especial, por grandes problemas. O governo peruano não está tendo uma política de apoio aos povos indígenas. Os índios da Amazônia Peruana estão sofrendo muito, não estão conseguindo terras para viver lá, há grupos isolados sendo perseguidos. As Américas de modo geral são péssimas no tratamento aos povos indígenas.
 

E a resistência indígena vai até quando, eles têm data para acabar?
Os índios vieram para ficar, as culturas mudam e não é ruim necessariamente que mudem. A nossa cultura inclusive muitas vezes precisa mudar para permanecer. Essa é a grande lição da antropologia.
 

Mas a noção de desenvolvimento é muito atrelada ao capital e o capital produz equipamentos, como computadores. Isso nada tem a ver com povos indígenas…
Tem muito a ver!
 

Mas, só complementando a minha idéia, os povos indígenas produzem uma sabedoria que não depende de equipamentos.
É verdade.
 

E como fica essa reflexão?
Os equipamentos, ao invés de destruírem a cultura, enriquecem, isso é um dado fundamental. Se a gente tem idéia da cultura como algo que não está engessado no tempo, que não pode mudar, se a gente admite a possibilidade da mudança da cultura e da continuidade da minha identidade cultural…
 

Mas o sistema chega patrolando, as pessoas e os comportamentos.
Chega, chega. Nós sabemos disso.
 

Então como é possível, esse sistema alcançar essas aldeias e não desvirtuá-las?
Tem um diálogo muito importante a respeito disso. Se você pensar em uma câmera filmadora, por exemplo, na verdade ela é apenas uma máquina de registra imagens. Mas os próprios índios podem usá-las para fazer seus filmes e há experiências muito ricas nesse sentido. O celular, por exemplo. As pessoas dizem: não é mais índio porque usa celular. Pelo contrário! Pelo celular, eles entram em contato com o mundo.
 

Essa contradição, ao menos, esse contraponto, aparece na série de telas do artista plástico Clóvis Irigaray, em que índios são vistos dentro de bibliotecas, tomando coca-cola, vendo TV. É para provocar essas reflexões que a senhora ilustrou o seu livro com elas?
Quis fazer uma homenagem à genialidade do Irigaray, porque ainda falta dizer muita coisa sobre o trabalho dele. Não sei qual era a intenção dele, mas isso tem um diálogo incrível com a nova antropologia. Quer dizer, o índio pode até tomar coca-cola, mas não vai deixar de ser índio por isso. É como a gente, não deixamos de ser brasileiros porque tomamos coca-cola, não perdemos nossa cultura por isso.
 

Pois é. Por isso que estou questionando, porque acontece com a gente. Compramos as mesmas roupas, os mesmos carros, ouvimos as mesmas músicas, perdemos um pouco nossa cultura dessa forma. Essa sociedade chegando nas aldeias com seus brindes não é perigosa?
Eu não diria que não tenha essa potencialidade destrutiva. Mas desde que eles tenham um território e condições mínimas para manter certa coesão social, vão encontrar seus caminhos.

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