KEKA WERNECK
Da Reportagem
Por trás da fachada moderna do agrobusiness escondem-se focos de trabalho escravo. Esse é um dos motivos que fazem Mato Grosso dividir com o Pará a liderança nacional na prática que fere os direitos dos trabalhadores e os direitos humanos.
“Pensa-se que o agronegócio, coisa muito atual, seja incompatível com a escravidão, mas aqui eu mesma vi, com meus próprios olhos, absurdos iguais aos do Pará. Em algum ponto perdido de algumas fazendas de soja e algodão, por exemplo, há sempre alguém sendo mantido assim”, denuncia a auditora fiscal do Trabalho, Marinalva Cardoso Dantas. Ela está entre as autoridades que lidam na área e estão em Cuiabá para o II Simpósio sobre Trabalho Escravo, ontem e hoje na Fiemt.
Ontem de manhã, aproveitando a presença dos convidados para o simpósio, o Ministério Público do Trabalho (MPT) realizou uma audiência pública com os 11 usineiros do Estado. Além do agronegócio, principalmente na expansão do plantio de soja e algodão, e da pecuária, o setor sulcroalcooleiro e a “indústria” do desmatamento também são acusados de manterem o problema.
A ganância é valor que move escravocratas, na opinião de um ilustre convidado, frei Henri, líder da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará. Ele é um dos 54 ameaçados de morte lá, assim como esteve um dia a norte-americana irmã Dorothy Stang, assassinada aos 73 anos, em fevereiro de 2005. “Querem o lucro maior possível, mesmo que, para isso, tratem as pessoas com a mentalidade contínua de que o pequeno trabalhador rural, o peão, o pobre, é uma pessoa de raça inferior”.
Para a auditora Marinalva, a impunidade também sustenta a prática. No Código Penal, o artigo 149 trata do assunto e diz que esse é um crime afiançável. Com reclusão de 2 a 8 anos.
Perguntado se a lei é branda, o procurador Luiz Antônio Camargo de Melo, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que também está na cidade, diz que, “se você observar o que se tem de denúncias e o que se tem de condenações, então a resposta é sim”. Segundo ele, há casos de prisões, mas os acusados são soltos para responderem em liberdade. E há juízes que entendem que os casos são para penas alternativas.
Nos últimos anos, o endurecimento contra a prática tem aparecido por meio de algumas decisões governamentais, como a “lista suja” do Ministério do Trabalho, que hoje tem 150 nomes de fazendeiros fichados para impedir que consigam crédito em bancos e outras instituições.
Mas há ainda um problema real: faltam fiscais para chegar aos rincões. “É um trabalho que causa grande esgotamento, porque a demanda é muita e, além disso, abala psicologicamente, porque nos deparamos com situações em que o homem é tratado como animal e ainda assim a gente tem quem que convencer que aquela pessoa ali tem direitos. É, portanto, uma ação humanista”.
Em 10 anos, de acordo com a CPT, 21 mil trabalhadores foram resgatados de cativeiros no país. No Pará, 8 mil. Em Mato Grosso, 5 mil. A maioria das ações parte da bravura de uns e outros, que, sem qualquer garantia de segurança, fogem desses guetos para pedir por ajuda.
O primeiro grito oficial contra a prática foi dado em Mato Grosso, pelo então bispo Dom Pedro Casaldáliga, um dos fundadores da CPT. Ele escreveu uma carta pública, denunciando a tragédia contra os trabalhadores rurais, mantidos sob a tutela de violentos fazendeiros, num país em que a jamais realizada reforma agrária mantém a violência no campo.