Da Redação / OPAN
A Usina Hidrelétrica de Castanheira está prevista para ser construída a aproximadamente 120 km da foz do rio Arinos, no município de Juara, região noroeste de Mato Grosso. O empreendimento é uma das prioridades do Programa de Parcerias e Incentivos (PPI), do Governo Federal, e está na fase de licenciamento ambiental, porém um estudo inédito revela inconsistências conceituais e metodológicas durante o processo de planejamento e licenciamento da usina.
Intitulado “Análise da avaliação de impactos cumulativos no processo de planejamento e licenciamento da UHE Castanheira”, o laudo técnico foi apresentado em primeira mão à Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT), em reunião que contou com a presença das pesquisadoras responsáveis pela elaboração do material e de representantes de comunidades que podem ser afetadas pelo empreendimento.
De autoria de Simone Athayde, Renata Utsunomiya e pesquisadores associados, o estudo foi publicado nesta segunda-feira (26) no site da Operação Amazônia Nativa (OPAN). Ao longo de suas 144 páginas, o documento constata a inviabilidade do projeto a partir de uma uma série de impactos socioecológicos que seriam provocados durante e após a construção da usina.
A UHE Castanheira está inserida na bacia do rio Juruena, onde está em curso a implementação de um complexo de usinas. Entre Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs), Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Usinas Hidrelétricas (UHE), são mais de cem projetos previstos para a região, sem contar os que já estão em operação.
Segundo o estudo, esta inter-relação entre os empreendimentos foi desconsiderada durante o processo de planejamento e licenciamento da UHE Castanheira. “As análises realizadas registram a precariedade do conhecimento sobre os impactos cumulativos (aditivos, sinérgicos e outros). Constatou-se uma série de inconsistências conceituais e metodológicas, incluindo definições problemáticas, desatualizadas e incoerentes entre si”, diz trecho da publicação.
Segundo o laudo, dentre todos os empreendimentos hidrelétricos planejados ou em operação na bacia, a UHE Castanheira é a que mais afeta a conectividade fluvial, uma vez que o projeto está localizado próxima à foz do rio, bloqueando todo seu canal principal (cerca de 600 km). Vale pontuar que a sub-bacia do rio Arinos é a região com a maior diversidade de espécies de peixes catalogadas na bacia do Juruena. “O barramento causará uma perda significativa da conectividade hidrológica na bacia, colocando em ameaça a existência de pelo menos 97 espécies de peixes migratórios”, complementa.
A quebra da conectividade entre os rios também representa uma ameaça à reprodução física e cultural dos povos indígenas que habitam a região (Apiaká, Kayabi, Munduruku, Rikbaktsa, Tapayuna e isolados). Além da redução de peixes, que colocaria em risco a soberania alimentar de vários povos, o projeto pode causar impactos culturais igualmente irreversíveis ou impossíveis de serem quantificados ou mitigados.
Um exemplo específico diz respeito ao povo Rikbaktsa. Durante rituais de casamento, as mulheres usam um colar confeccionado a partir de pequenas conchas. Tutãra, como é chamada a peça, também é o nome do bivalve responsável pela matéria prima muito singular, afinal tal espécie de molusco só é encontrada no baixo curso do Arinos. Caso a UHE seja construída, o Paxyodon syrmatophorus, nome científico do tutãra, deve desaparecer, assim como a sofisticada peça indumentária homônima, considerada patrimônio ecológico, histórico, paisagístico, artístico e arqueológico.
Além dos aspectos ambientais, sociais e culturais, o estudo aponta a inviabilidade econômica do empreendimento, atestada por uma análise de custo-benefício realizada pela Conservation Strategy Fund (CSF). “A UHE Castanheira poderia gerar um prejuízo de aproximadamente R$ 408 milhões aos investidores. Acrescentando-se os custos dos impactos negativos (emissões de gases de efeito estufa, perda econômica gerada pela inundação de áreas produtivas e diminuição da renda de pescadores), foi calculada uma perda potencial de aproximadamente R$ 589 milhões.”
O documento ainda destaca a necessidade de haver uma maior articulação entre os estudos que subsidiam o planejamento e o licenciamento do empreendimento. Como exemplo, cita que questões levantadas na Avaliação Ambiental Integrada (AAI) e no Estudo do Componente Indígena (ECI) não foram consideradas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA). “Percebe-se que os temas continuam a ser tratados de forma fragmentada, faltando a indicação de pesquisas que possibilitem o entendimento da interação entre fatores”, pontua.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), instituição pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, é a agência responsável pelos estudos de impacto ambiental. A condução do processo de licenciamento da usina é de responsabilidade da SEMA-MT. A EPE contratou os serviços do consórcio Habtec Mott MacDonald – Novaterra para a realização do EIA.
As pesquisadoras propõem a realização de novos estudos mais aprofundados sobre os possíveis impactos cumulativos, sempre levando em conta, no início do processo, o conhecimento indígena e local, com o devido processo de consulta às populações. Por fim, diante da inviabilidade técnica do empreendimento, recomendam considerar outras opções de geração de energia (descentralizada, solar, eólica ou aumentar a eficiência energética).
Detalhes sobre o projeto e a bacia hidrográfica
O projeto da UHE Castanheira prevê o alagamento de uma área de 94,7 km², equivalente a quase 9,5 mil campos de futebol. Prevista para gerar 140 MW, a usina entregaria 98 MW de energia firme. O custo do empreendimento é estimado em mais de R$ 15 milhões. Além de ser um dos empreendimentos prioritários do PPI, a UHE Castanheira também está prevista no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e no Plano Decenal de Energia 2030. A data estimada de entrada em operação, caso o projeto prossiga, é 2028.
A bacia do Juruena é a mais extensa do estado, drenando mais de 19 milhões de hectares em uma área que abrange 29 municípios. Concentra 23 terras indígenas, que ocupam cerca de 27% de sua área total. A diversidade étnica da região tem uma significância especial, uma vez que abriga 12 dos 43 povos de Mato Grosso.
Foto: Sinfra-MT