Por Bruna Pinheiro / Formad
“Inconstitucionalidade não superada”, assim se manifestou a Procuradoria Geral da República (PGR) a respeito da Lei 12.434/2024, o Cota Zero, em ação no Supremo Tribunal Federal (STF), que visa a derrubada da proibição da pesca de 12 espécies de peixes nas bacias de Mato Grosso. A manifestação alerta ainda sobre a ausência de estudos científicos nas alterações propostas pelo Governo estadual e os efeitos da proibição sobre a vida de pescadores e suas famílias, a economia local e o modo de vida das comunidades. Com essa resposta, cabe ao relator da ação no STF, ministro André Mendonça, dar um ultimato sobre o caso que há mais de um ano causa insegurança a milhares de pescadores e comerciantes em Mato Grosso.
Em nova manifestação, o procurador geral da República, Paulo Gonet Branco, reforçou o que já vem sendo argumentado por meio de pareceres, notas técnicas e manifestações públicas que defendem a inconstitucionalidade do Cota Zero no STF. Apresentada pelo Governo de Mato Grosso em maio de 2023, a proposta é constantemente rechaçada pela ausência de comprovações técnicas e fragilidades no que diz respeito à seguridade social de milhares de pescadoras e pescadores.
Ainda assim, até hoje, o Governo não conseguiu emplacar a iniciativa, que só obteve vitória na Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), onde o projeto inicial foi aprovado por maioria (graças à base governista), sem consulta pública e amplo debate com a sociedade. Já em outras esferas, tanto no âmbito estadual quanto federal, a Lei traz um potencial risco previdenciário, além de não demonstrar surtir efeitos para combater a suposta redução do estoque pesqueiro.
“O que pode se tirar da manifestação da PGR é que todas as falas, os pareceres, as notas técnicas e pontos de vista, fossem jurídicos ou técnico-jurídicos, apresentados por órgãos federais e por toda a sociedade civil organizada, que já anteviam que a Lei provocaria efeitos de insegurança alimentar, penúria e um atentado à dignidade humana, vem se concretizando agora”, avalia o secretário executivo do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), Herman Oliveira.
Para a advogada e consultora jurídica do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT), Edilene Amaral, a nova manifestação demonstra que um ponto final sobre o Cota Zero precisa ser dado em julgamento no STF. “Nos revigora e traz esperança às comunidades tradicionais impactadas, a decisão da PGR, que mesmo depois de, anteriormente, ter se manifestado para que fossem novamente ouvidos os órgãos envolvidos nas questões técnicas, enfim, deliberou que o processo já está maduro o suficiente para uma decisão. E não só preliminar, como de próprio mérito. Dessa forma, considera que a tentativa de alterar a dinâmica da política de pesca em Mato Grosso, como a lei atual, que limita a pesca nos rios a 12 espécies, é inconstitucional. E principalmente, que não há remendo que possa garantir sua constitucionalidade. Norma essa que impõe riscos severos à qualidade de vida e de sobrevida a uma imensa população mato-grossense de pescadoras e pescadores”, afirma.
Efeitos já são sentidos na mesa
“A manifestação da PGR vem totalmente ao encontro de uma grave situação que já está posta no estado”, alerta Herman Oliveira, do Formad. O cenário a que ele se refere vem sendo acompanhado por organizações socioambientais de Mato Grosso há meses, com dezenas de relatos de pescadoras e pescadores à beira da miséria em suas colônias. Falta de dinheiro, medo de exercer a atividade profissional, sinais de depressão e outros prejuízos à saúde mental, além da fome, são constantemente informados por representantes.
Na última semana, uma reunião coordenada pelo Formad, com presidentes de colônias de pescadores de Mato Grosso definiu entre os encaminhamentos um pedido de ajuda emergencial para as famílias, para tentar ao menos, a garantia de alimentação. Em municípios como Barão de Melgaço e Santo Antônio de Leverger, já há casos de comércios e restaurantes fechando as portas devido à crise financeira.
“Fomos obrigados a lançar mão de uma assistência humanitária em caráter emergencial, justamente porque o governador de Mato Grosso, a PGE e os deputados que aprovaram essa Lei, não absorveram ilegalidades minimamente razoáveis e que sempre foram denunciadas por nós. É desumano que essas famílias sejam colocadas nesta situação por um projeto totalmente inconstitucional e imoral”, acrescentou o secretário executivo.
Jogo de empurra-empurra
No início de maio, um mês após a audiência de conciliação sem acordo entre as partes no STF, a PGR se manifestou convocando órgãos técnicos para novos pareceres no processo. O pedido foi rejeitado pelo ministro André Mendonça que, então, despachou solicitando apenas a manifestação da Procuradoria Geral. Com a resposta retornando à PGR, um “empurra-empurra” sem motivos aumentou ainda mais a tensão sobre o caso. Isto porque, aparentemente, não há novos argumentos que possam ser levantados para defender a legalidade do Cota Zero. Ao menos, o Governo de Mato Grosso não atingiu tal objetivo.
Dos pontos citados pela PGR em sua manifestação, praticamente todos já foram incansavelmente rebatidos por órgãos federais e organizações da sociedade civil. Em relação ao estoque pesqueiro nas bacias de Mato Grosso, ponto argumentado pelo Governo para justificar a proibição total da pesca, e logo depois, reduzida a proibição para 12 espécies, sendo elas as de maior valor comercial, mais uma vez, foi desconsiderado.
Para a advogada do Formad, Bruna Bolzani, embora branda, a manifestação da Procuradoria foi certeira, pois explicou que, além da falta de estudos científicos, a lista de 12 espécies não resolve as inconstitucionalidades da Lei 12.197/2023. A declaração soma-se a de outros órgãos, a exemplo da AGU, Ministério da Pesca, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Defensoria Pública da União e Ibama, que já se manifestaram contrários.
“Sob o falso pretexto de proteção ambiental, o Cota Zero atentou contra a dignidade dos pescadores e pescadoras artesanais, mas agora estamos ainda mais próximos de conseguir o julgamento pela inconstitucionalidade da Lei, que se encontra em condições processuais de ser julgada pelos ministros do STF, mas ainda sem data marcada. Com isso, as arbitrariedades na fiscalização contra pescadores e pescadoras, que deverão ser apuradas, estão com os dias contados”, argumenta a advogada.
A manifestação do procurador geral Paulo Gonet Branco, que pode colocar fim a meses de espera, aponta que “são extraídas as conclusões de que as modificações operadas pela Lei estadual n. 12.434/2024 não foram acompanhadas de estudos científicos e não afastam os efeitos da vedação contida na Lei estadual n. 12.197/2023 sobre a vida de pescadores e seus familiares, a economia local e o modo de vida específico de povos e comunidades tradicionais. Não se vislumbra como superada, portanto, a inconstitucionalidade apontada no parecer apresentado pela Procuradoria-Geral da República nestes autos”.
O relator das ações diretas de inconstitucionalidade do Cota Zero no STF é o ministro André Mendonça, que nunca se manifestou publicamente sobre o caso. Durante o processo, as partes envolvidas foram convocadas por ele para uma fase conciliatória, sem sucesso. A manifestação da PGR será encaminhada ao ministro para levar o caso a julgamento, ainda sem data marcada, ou para novos encaminhamentos.