Artigo l Portão do Inferno, um risco para o país

Parecer do ICMBio diz que obra pode inviabilizar funcionamento da unidade de conservação.

Por Andréia Fanzeres*

Quem está concordando com a história de que é melhor derrubar logo o morro que fica na peculiar região do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães chamado Portão do Inferno para proteger de eventuais desmoronamentos as pessoas que por ali transitam, não faz ideia do risco que correm esta e as outras unidades de conservação do país.

Depois de muita pressão política e contorcionismos narrativos em volta do fato de que a estrada, que atravessa o parque nacional, foi construída em área de fragilidade geológica e que há muito tempo o poder público deveria ter tomado providências para reduzir as chances de acidentes no local, o governo de Mato Grosso celebra as obras que está impondo goela abaixo em tom de vitória, depois de muito brigar, mas desistir repentinamente da concessão de serviços de uso público no parque nacional.

A notícia da licença foi antecipada pela secretária de meio ambiente do estado de Mato Grosso, Mauren Lazzaretti, no dia 17 de junho, ressaltando em sua fala que o ICMBio e o Iphan também estavam de acordo com a proposta do governo. No entanto, o parecer técnico do ICMBio elenca implicações gravíssimas para a sociedade e à unidade de conservação, que ensejariam muito mais atenção, cuidado e rigor antes da expedição de qualquer autorização para as obras.

O parecer do órgão federal considera que as obras propostas pelo governo de Mato Grosso podem inviabilizar o funcionamento do parque nacional e reitera, em diversos trechos, que os técnicos só puderam analisar uma única opção de intervenção, a demolição do morro. Ou seja, não houve apresentação de alternativas locacionais – algo básico para qualquer avaliação de impacto ambiental, ainda mais em área de fragilidade natural no interior de um parque nacional.

Ainda segundo o parecer, está previsto o fechamento da rodovia entre as 07h30 e 16h30, compreendendo todo o horário de funcionamento da unidade de conservação, impactando as atividades cotidianas de gestão, e impedindo também o acesso ao parque nacional por visitantes e operadores de turismo. A população terá dificuldades para utilizar serviços públicos essenciais, como saúde, educação, segurança pública e emergências. E, até agora a população de Chapada dos Guimarães está às escuras com relação ao que realmente vai acontecer. Outros efeitos analisados tecnicamente são risco elevado de contaminação por produtos derivados de petróleo no lençol freático e da drenagem superficial, risco às espécies locais e ao abastecimento humano.

O perigo de desmoronamento por uso de explosivos e de equipamentos e máquinas pesadas traz alto potencial para a queda de blocos que formam o painel de gravuras do Sítio Arqueológico Portão do Inferno, localizado a 15 metros do local das obras. A proteção de tais sítios é um dos objetivos da unidade de conservação, de acordo com seu decreto de criação. Outro problema foi a ausência de avaliação da existência de outros sítios arqueológicos nas localidades adjacentes à obra, tampouco quanto ao risco de depreciação dos sítios Salgadeira e Mata Fria.

Relembrando

Em dezembro de 2023 desprenderam-se rochas de um paredão rente à MT-251, que liga Cuiabá ao principal destino turístico do estado. Trata-se de uma estrada parque estadual que passa pela unidade de conservação federal, administrada pelo ICMBio. O governo mato-grossense interditou a via nos dois sentidos, mas ainda não sabia o que fazer. Impôs bloqueios totais e parciais diários, proibiu o trânsito de ônibus, caminhões de pequeno porte e até vans escolares. O impacto à economia local tem sido imenso. Anunciou que em três meses seriam instaladas telas de proteção – apelidadas pela população como telas de galinheiro – mesmo sem certeza sobre sua eficácia. Culpou o ICMBio por suposta demora para liberação das obras emergenciais e por prejuízos ao turismo e, inclusive, pela queda das rochas, inflamando os comerciantes e moradores da região. As autorizações, porém, não demoraram a ser expedidas colocando condicionantes, que foram descumpridas. O estado foi multado.

Sem dar qualquer satisfação, as obras – que eram tão urgentes e fundamentais – foram abandonadas pelo próprio estado, a um custo de 6 milhões de reais. Os restos dessa intervenção desastrada continuam ao lado da pista para quem quiser ver. Mas interdição da MT-251 continua regulada por policiais militares, que controlam o tráfego em 6 km da via liberando comboios a cada 15 ou 20 minutos. E, quando querem, barram até o ICMBio de circular dentro da unidade de conservação sobre a qual tem responsabilidade de gerir, até para o atendimento de emergências, como incêndios florestais. Naquele mês, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso fez uma audiência pública na Câmara Municipal de Chapada dos Guimarães e um engenheiro apresentou um powerpoint com imagens sobre o que fazer, incluindo túnel, o desmonte do morro e a construção de uma ponte. Dias depois, o governo anunciou que encontrou a “solução definitiva” e chamou isso de retaludamento. Em abril, anunciou a contratação, com dispensa de licitação, da empresa Lotufo Engenharia e Construções, ligada ao senador e ex-chefe da Casa Civil do governo, Mauro Carvalho Júnior. O valor da obra ficou em 29 milhões de reais, com prazo de 120 dias para a conclusão. Nas letras miúdas, era possível ler no powerpoint que a estrada ficaria completamente fechada durante as obras durante o dia, liberando o trânsito nos finais de semana.

A opção do Ibama em proceder ao licenciamento de forma simplificada neste caso pode ser um tiro saindo pela culatra. Primeiro porque é flagrantemente um recuo frente às pressões políticas protagonizadas pessoalmente pelo governador, Mauro Mendes. Segundo porque respalda-se em um decreto de estado de emergência que considera risco concreto de desastre sobre a estrada quando convém, uma vez que o risco tem sido conhecido e negligenciado há anos.

E, em terceiro lugar, minimiza a importância do licenciamento enquanto instrumento de avaliação de viabilidade ambiental de intervenções sobre o ambiente natural. Afinal, a proposta do estado é construir uma nova estrada por meio da remoção de 180 mil metros cúbicos de rocha de um paredão que é atributo natural e histórico de Chapada dos Guimarães e, também, um dos objetivos de criação do parque nacional. É ainda lar das araras vermelhas, símbolo da unidade de conservação, e onde se localiza um sítio arqueológico com datações que remontam a cinco mil anos de história.

Esses são motivos suficientes para que este licenciamento tivesse pelo menos um EIA-RIMA ou alternativas locacionais fundamentadas para discussão com transparência com a sociedade civil em audiências públicas conduzidas por quem tem a competência deste licenciamento, o Ibama. Deixar tudo isso de lado abrirá um precedente perigoso para as demais unidades de conservação do país.

*Andreia Fanzeres é membro do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad) e do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (ObservaMT).

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