Artigo l Fomos enganados

Obra de retaludamento no Portão do Inferno está prestes a iniciar a partir de processos pouco consistentes orientados pelo governo estadual.

Por Dafne Spolti*

Os técnicos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) deveriam prestar atenção a pedidos que venham do governo estadual de Mato Grosso. Todos sabem que ele se movimenta constantemente de forma prejudicial ao meio ambiente e, muitas vezes, à população. Exemplo recente é o da lei 12.197/2023, ou “Lei da Cota Zero”, que proíbe o transporte de peixes em Mato Grosso e, portanto, a própria profissão dos pescadores, impactados economicamente, emocionalmente e socialmente, já que agora passaram a ser criminalizados. Os retrocessos são muitos.

 

Apesar de vir do governo estadual, o Ibama fez o mínimo e optou pelo licenciamento simplificado da obra de retaludamento das rochas na região do Portão do Inferno, acreditando estar dando resposta rápida à suposta situação de emergência que o próprio governo estadual apresentava. Há quem questione a decisão ser pautada em outros interesses, mas a opinião que predomina é a de que foi orientada pela proteção à vida diante da iminência de uma “catástrofe”.

Eu também acreditava nessa emergência.

Durante meses, quando falávamos sobre o assunto aqui em Chapada, eu defendia que estavam fazendo a coisa certa com a instalação das telas de contenção; depois, numa rotina de idas a médicos com meus pais, esperava sem reclamar no bloqueio do pare-e-siga, entendendo que um trabalho sério estava em curso.

 

Foram meses assim, até que dia 27 de junho percebi que a história era outra. Naquele momento, o Ministério Público Estadual havia tentado a abertura da rodovia para o período do Festival de Inverno de Chapada dos Guimarães, recebendo uma negativa da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (Sinfra), até que a liberação veio quando o governador Mauro Mendes e sua esposa subiram para cá no show da Maiara e Maraísa.

A emergência caiu por terra. Soube: estamos sendo enganados.

 

Nesse período, as discussões sobre a obra de retaludamento se intensificaram, em defesa do patrimônio ambiental e cultural na região do Portão do Inferno, e pelo direito de ir e vir.

Eu já tenho condoído com outra mudança ali no cenário do Portão do Inferno de onde, ao longe, acompanhamos a instalação de uma lavoura. Agora fico sempre pensando em como será o morro ser retirado e substituído por um cenário artificial cortado por uma ou duas pistas.

Com a retirada da rocha, um sítio arqueológico – verdadeiro museu a céu aberto – e a memória das pessoas antigas que viveram aqui há 5 mil anos também serão aterradas, provavelmente. E isso, sem necessidade, sem conhecermos a fundo outras saídas menos danosas.

Todos aqui em Chapada se perguntam como faremos no período da obra. Já temos sido muito impactados pelo fechamento (que se mantém para veículos maiores) e por isso sabemos o que causa para nós. Como iremos para Cuiabá? A Chapada está fadada à falência?

Nos perguntamos também, bastante, sobre as emergências de saúde. Quando uma mulher entrar em trabalho de parto, ela conseguirá chegar a Cuiabá para ter o neném? Quem garante isso?

Partes das primeiras telas e mantas que seriam instaladas no Portão do Inferno a um custo de 6 milhões de reais estão jogadas no chão. A obra não terminou. Então é mesmo difícil confiar nesse trabalho que está para iniciar amanhã (28), sem discussão com a população. As placas já foram instaladas indicando o início das obras, goela abaixo.

 

Todas as problemáticas do processo de licenciamento – com diversas lacunas graves, diga-se de passagem –, são somadas agora à certeza de que o retaludamento é, por todos os motivos, a pior escolha. Além da paisagem natural e cultural e do direito de ir e vir, ela não se sustenta enquanto uma obra necessária, viável e nem mesmo segura.

Profissionais da geologia vinculados à Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) com ampla experiência são unânimes em dizer que o retaludamento é a pior escolha. Sendo rochas de arenito, as interferências podem causar um efeito reverso ao pretendido: mais instabilidade, novos desmoronamentos e até a ocorrência de voçorocas, grandes erosões na região da obra, podendo ter um efeito dominó naquele conjunto de rochas.

Os impactos que tivemos do ano passado para cá e as evidências de insucesso nos mobilizaram contra o retaludamento. A preocupação é grande.

Se o Ibama autorizou com tanta velocidade o governo Mauro Mendes a fazer a obra, agora, diante de um conjunto robusto informações que não deixam dúvidas para as contradições e riscos desse projeto, deveria ser ágil em ouvir a sociedade e suspender o licenciamento, se livrando de uma postura que será, por fim, negligente.

Foto: Henrique Santian

*Dafne Spolti é jornalista, moradora de Chapada, membro do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad)

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