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Julgamento do Caso Cañas: 19 anos depois do crime, réu diz não lembrar de nada

Priscila D. de Carvalho
Cimi – Assessoria de Comunicação

Acontece hoje, 26, o terceiro dia do julgamento de um dos seis acusados pela morte de Vicente Cañas Costa, missionário jesuíta assassinado em 1987, no Mato Grosso. Um júri popular de sete pessoas deverá avaliar se Ronaldo Antônio Osmar, ex-delegado da cidade de Juína, foi mesmo intermediário entre os fazendeiros mandantes do crime e os pistoleiros contratados para realizá-lo. A acusação chegou a Ronaldo através de depoimentos de dois Rikbatsa que, em situações distintas, ouviram relatos semelhantes sobre a circunstância do assassinato de Cañas.

 

Na tarde de ontem, 25, foram ouvidas as primeiras gravações de depoimentos dos indígenas relatando as confissões que ouviram de não-índios. O antropólogo Rinaldo Arruda, testemunha de acusação, foi o primeiro não indígena que os dois Rikbaktsa procuraram para relatar o que tinham ouvido sobre o assassinato, buscando orientações sobre o que fazer com as informações. Um deles ouviu confissão de um dos acusados de pistolagem, Martinez Abadio da Silva.

 

Rinaldo Arruda também foi questionado sobre a característica oral das culturas indígenas e, como cientista, afirmou que os relatos orais são tão confiáveis como os escritos, já que se tratam de culturas de base ágrafa. Na história e na antropologia, os registros orais têm hoje tanto valor quanto os documentos escritos, pois ambos são, igualmente, narrações humanas.

 

Ao relatar suas pesquisas entre os povos Rikbaktsa e Enawene Nawe, o antropólogo contribuiu para a localização do crime no contexto de disputas pela terra que havia na região. O professor da PUC-SP explicou também detalhes da visão de mundo (cosmovisão) destes povos.

 

Eufemismos

 

Ao interrogar a primeira testemunha, ficou clara a visão dos advogados de defesa sobre os povos indígenas. O advogado de defesa, Dr. Zoroastro Teixera, perguntou sobre a “aculturação” dos índios e sobre a possibilidade de terem incorporado o hábito de mentir através do contato com outros grupos. Perguntou quais são as formas de sustentação das famílias, já que muitas teriam um estilo ostensivo de vida “com antenas parabólicas” e já que “consta que o índio não tem um estilo muito oneroso”. Questionou também as fontes de financiamento das entidades que atuam com indígenas. O antropólogo Rinaldo respondeu listando as atividades econômicas indígenas e sustentou que, no mundo atual, nenhum grupo humano vive totalmente fora da economia de mercado, havendo trocas e comércio.

 

O réu Ronaldo Antônio Osmar foi ouvido pelo júri na noite de terça-feira. Negou qualquer envolvimento com o assassinato e por diversas vezes afirmou não lembrar dos fatos. Disse que conhecia Vicente Cañas apenas pelas histórias que ouvia sobre o “missionário barbudo, de cabelos compridos e que usava colares como os índios”.

 

Segundo o ex-delegado, Cañas era conhecido na região como sendo “chefe” dos indígenas e seria responsabilizado por ser idealizador de assassinatos atribuídos aos indígenas que ocorreram antes de sua morte, já no contexto de tensão entre os Enawene Nawe e não-indios. O réu também negou conhecer qualquer tensão entre indígenas e posseiros ou proprietários de terras. No entanto, como delegado de polícia, ele confirmou ter feito a ocorrência de um dos casos de assassinatos.

 

O réu negou também que tenha tido qualquer atitude para retardar as investigações, apesar dos questionamentos feitos pelo advogado de acusação, Mario Lucio Avelar, e pela assistência dele, através da Dra. Michael Nolan, que citaram textualmente reclamações de atraso nas diligencias do delegado que coordenava as investigações, de Cuiabá.

 

A tese da defesa é que o réu não pode ser condenado porque, nas perícias realizadas no corpo de Cañas, os legistas não conseguiram identificar a causa da morte, apesar de terem apontado o uso de objeto perfuro cortante. No entanto, a perícia foi prejudicada pelo fato de o corpo ter sido encontrado cerca de 40 dias depois da morte. O advogado do réu, Dr. Zoroastro Teixeira, que recebe o apelido de “advogado do diabo” em Cuiabá, afirma que, não havendo a causa da morte na perícia, não se pode concluir nem mesmo que houve assassinato.

 

No momento da leitura dos autos do processo, a defesa usou diversos depoimentos de pessoas que encontraram o corpo de Cañas, com relatos de sinais de briga, como os óculos quebrados e as sandálias de dedo rasgadas e espalhadas pelo barraco, além de objetos fora do lugar dentro e fora da cabana. Do lado de fora, estava semi-afundado o barco a motor que era usado pelo missionário. O grupo de quatro pessoas que encontrou Cañas também se deparou com um círculo de 12 velas queimadas e apagadas que, segundo depoimentos da época, foram identificadas como sinais da presença de pessoas de fora, já que Cañas não usava velas, mas uma lamparina a gás.

 

O julgamento tem sido acompanhado por dezenas de pessoas, sobretudo de representantes de entidades indigenistas ou pastorais.

 

Dois julgamentos

 

Havia seis acusados pelo assassinato de Cañas. Dois deles faleceram e dois tiveram o crime prescrito por terem chegado aos 70 anos de idade. Os outros dois passarão por júri popular. Foi definida na terça-feira, no primeiro dia de julgamento, a prescrição da punibilidade de Martinez Abadio da Silva, que estava na lista dos réus que seriam julgados esta semana.

 

Através de recurso previsto na legislação processual, a defesa fez com que se desmembrasse o julgamento dos dois acusados pelo assassinato que têm menos de 70 anos. Ambos os réus serão julgados com a acusação de homicídio duplamente qualificado, mediante pagamento e em emboscada.

 

O outro réu, José Vicente da Silva, será julgado a partir da próxima terça-feira, 31 de outubro. O advogado de José Vicente retirou-se do júri para garantir o adiamento, já que a acusação, que poderia definir a ordem do julgamento dos réus, queria que José Vicente fosse a julgamento primeiro.

 

Os advogados de defesa comprometeram-se a garantir a presença das quatro testemunhas que arrolaram para o caso e que não estavam presentes no tribunal.

 

O julgamento acontece 19 anos depois do assassinato, a menos de um ano da prescrição do caso.

 

Priscila D. de Carvalho
Cimi – Assessoria de Comunicação
(61) 2106 1650/ 9979 6912
www.cimi.org.br

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